Topo

Matheus Pichonelli

Embate de Felipe Neto com Bolsonaro prova que mundo não dá volta. Capota

Felipe Neto, em entrevista do UOL na segunda-feira (7) - Reprodução
Felipe Neto, em entrevista do UOL na segunda-feira (7) Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

08/12/2020 04h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Um exercício fundamental para não deixar que tudo se dilua na corrente sanguínea da normalidade é pensar o que diria alguém que ameaçou bater as botas em 2016 e só agora saiu do coma — alguém que viu o discurso de Jair Bolsonaro em seu voto como deputado federal, no processo de impeachment de Dilma Rousseff.

O personagem imaginário voltaria a dormir se descobrisse que a atração do programa de Luciana Gimenez se tornou presidente da República, e que seu maior rival é aquele apresentador engomadinho que mandava demitir os participantes de um reality show chamado "O Aprendiz" — o mesmo programa que forjou o ídolo da atração de auditório que acompanha, como novela, as tentativas de levar as eleições dos EUA para o tapetão.

Se tivesse um filho na idade do meu, o sujeito afundaria de vez no sono profundo se fosse avisado de que, neste novo normal, aquele moleque de fala escatológica e arrogante que pintava os cabelos se tornaria uma espécie de oráculo sobre a saída da crise para a esquerda que ele malhava dia sim, outro também.

Pior seria descobrir que, se soubesse juntar lé com cré, ele concordaria com o ídolo do filho que até então provocava apenas urticária quando falava.

Até onde sei, estive acordado neste tempo todo, mas mal me lembro do tempo em que Jair Bolsonaro era uma piada de mau gosto e o Felipe Neto era alguém com muitos likes e pouca ideia do que fazia na Terra.

Mas aí veio 2020 e assim chegamos ao fim dos muito loucos anos 2010. Até o fim de dezembro, é bom não estranhar se nossa xícara nos der bom dia.

Em longa entrevista ao UOL após ser colocado em duas listas, a das pessoas mais influentes da revista Time e a de detratores do governo Bolsonaro, Felipe Neto teve chance de falar um pouco de tudo nesta segunda-feira (7). Inclusive sobre em qual das listas se vê mais bem encaixado.

Fora da persona pública, aquela que tira onda no Twitter, o Felipe real admite que não se sente seguro nem confortável em saber que é vigiado pelo governo federal. A lista de detratores, ele avalia, foi um tiro no pé para o governo, já que conseguiu angariar simpatia a nomes que não tinham tanta evidência como ele. Para sua saúde mental foi um desastre. Seus pais, por exemplo, já não dormem.

Mas é com humor que ajuda a divulgar a gravidade dos fatos para mais gente. De multidão ele entende.

Não, ninguém mais aguenta concordar com o Felipe Neto, mas até quem torce o nariz há de convir: nada de bom pode vir, de fato, dessa lista produzida pelo governo. Se não serviu pra nada, pra que a relação de inimigos? Se serviu, é a destruição da democracia.

Felipe Neto, que diz se arrepender da virulência antipetista de outros tempos (embora diga não ser petista hoje), talvez não saiba, mas emula um argumento antigo do ex-presidente Lula quando diz que não é de direita nem esquerda; é apenas um youtuber. Lula tinha uma frase parecida quando era perguntado sobre posicionamento ideológico. Mas mudava a profissão. "Sou torneiro mecânico".

Em certo momento da entrevista, Felipe Neto foi até mais específico ao se descrever como youtuber que faz vídeo sobre Minecraft —para mais à frente dizer que lá também é espaço para discutir diversidade, sem os argumentos incisivos que têm manifestado em suas redes.

Por causa desses posicionamentos, viu a extrema-direita criar uma narrativa associando-o à pedofilia por causa de uma "carta de recomendação" de um delegado. Disse também ter perdido patrocínio e se afastado de amigos influenciadores incapazes de perceber a gravidade do momento.

Para ele, figuras como Steve Bannon e Olavo de Carvalho, uma piada para qualquer um que acompanhasse seus delírios em décadas passadas, não são pessoas intrinsecamente más, mas pessoas tão seduzidas pelo discurso ideológico insano, que acreditam tão fortemente que estejam do lado certo, que não importa o que acontece no mundo real. Vão ser sempre os áulicos das teorias da conspiração — uma praga, segundo o youtuber, que ainda nos levará à guerra.

Se ela estourar, já temos o nosso profeta. É bom não duvidar.

O youtuber que até outro dia causava estresses estomacais a todo pai de família que não aguentava mais ver quartos de casarões inundados por areia ou Nutella agora é o amigo dos pais de crianças pequenas que tentam se eleger prefeitos em cidades estratégicas do país.

Neto foi uma espécie de consultor informal dos amigos Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo e Manuela D'Ávila (PCdoB) em Porto Alegre. Anunciou apoio, jogou videogame, participou de lives e, mesmo não admitindo, deu aquele toque amigo para ajudar os candidatos a se dissociarem de uma imagem ligada às esquerdas (que ele corretamente cita no plural): a de defensores de duas ditaduras indefensáveis.

A análise é dura, mas precisa ser minimamente ouvida por quem dialoga diariamente com uma audiência maior do que a do Jornal Nacional: militância não ganha voto, mas muitos políticos a temem, ficam atrelados a ela, e afugentam os eleitores que buscam moderação.

Nesse sentido, avalia o consultor informal (?) dos amigos, Boulos acertou em mostrar que não é um lunático que invade casas. "Não estou dizendo que precisa ser menos de esquerda. Mas a percepção do público sobre a esquerda precisa mudar. Venezuela e Cuba são os maiores argumentos que a direita tem."

A dica de amigo está nas entrelinhas: menos Fidel, mais Celtinha.

Embora diga e repita que não é cientista político, os políticos que hoje tentam se (re)conectar com o público pelas vias da comunicação digital talvez tenham algo a repensar quando veem o youtuber mais assistido do país dizer que o PSDB não é mais centro-direita e que o divórcio entre PT e PDT pode custar caro em 2022. Custou no Rio, não custou?, lembra o youtuber.

Ele ainda se arrisca a dizer que o problema dos afetos políticos contemporâneos é a esperança. No caso, a esperança em um salvador.

A solução?

"Não sei".

E quem sabe?

Questionado se passou por uma epifania de 2016 até os dias atuais, Felipe Neto diz que seu público acompanhou em tempo real seu amadurecimento. Estava na casa dos 20 quando chegou ao auge. Hoje tem 32.

De lá pra cá, rasgou as "raízes reacionárias" e se tornou um "progressista humanitário" que aprendeu a ouvir. Na verdade, aprendeu na marra descobrindo que não tinha ideia da realidade dos que errava em retratar. Para ele, não tem como se aprofundar na realidade, através da escuta e dos estudos, e não perceber o quanto essa sociedade é injusta e destrói oportunidades. Em outras palavras, a guinada à esquerda era tão inevitável como o parágrafo seguinte de um livro em direção à consciência.

Se visse Bolsonaro na frente, jura que não diria nada. Bolsonaro, afirmou, é um caso sem conserto.

Já o filho 03 do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), ganhou os devidos créditos por teoria de que, para ser conservador, não é preciso estudar. Bananinha só errou o nome, disse. É possível, sim, ser conservador e estudioso. Mas para ser reacionário bastam cinco vídeos raivosos no YouTube, a mesma plataforma que o levou até ali.

Exemplo disso é o ex-goleiro Marcos, que outro dia refutou a dica de um seguidor que o mandou estudar. "Eu não, vai que viro esquerdista", respondeu o pentacampeão.

"Achei isso maravilhoso", debochou Felipe Neto, sem perceber que acabava de enviar o colunista palmeirense para o vórtice de uma realidade paralela em que o orgulho do antigo ídolo virou vergonha e a implicância com o ídolo do filho virou concordância numa estrada de tijolos amarelos que transformou boçalidade em "governo".

Se você não aguenta mais concordar com Felipe Neto, preciso concordar com você: os roteiristas que assumiram o comando de 2016 pra cá dessa vez foram longe demais.