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Matheus Pichonelli

Da suspeita à pena de morte: o julgamento recorde de Edson e Jhordan

Câmera flagra PM atirando em jovens negros em blitz em Belford Roxo (RJ) na madrugada de sábado (12). Em seguida, eles são levados em uma viatura. Corpos aparecem em outro bairro da cidade com sinais de tortura - Reprodução
Câmera flagra PM atirando em jovens negros em blitz em Belford Roxo (RJ) na madrugada de sábado (12). Em seguida, eles são levados em uma viatura. Corpos aparecem em outro bairro da cidade com sinais de tortura Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

16/12/2020 04h01

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Para um país onde não existe pena de morte, durou pouco o julgamento de Edson e Jhordan. Suspeitos a priori, foram abordados, indiciados, denunciados e julgados em tempo recorde. Segundos? Minutos? Não se sabe ao certo quanto tempo permaneceram vivos após terem o passeio de moto por Belford Roxo, na Baixada Fluminense, interrompido pelo disparo de dois policiais de plantão.

A pena de morte começou a ser assinada com um fuzil. O primeiro projétil lançou os rapazes ao chão. Um deles foi chutado enquanto ainda estava caído. Com o cano da arma, um dos policiais ainda bateu em sua cabeça. O réu estava agachado. Ele foi algemado com a cara na parede em seguida.

Não foi uma batalha, dessas que se desvelam no lusco-fusco de trincheiras e dos tiroteios, como nos filmes policiais. Foi um massacre.

Edson e Jhordan tiveram chance de apelar da sentença quando foram encaminhados para a viatura, espécie de segunda instância do tribunal. Não foram atendidos.

Seus corpos foram encontrados na tarde do mesmo dia a alguns quilômetros dali.

Os policiais-promotores-juízes-carrascos-executores do caso são um cabo e um soldado, detentores das patentes que, segundo o deputado Eduardo Bolsonaro, filho 03 do presidente, bastariam para fechar o Supremo Tribunal Federal. Em Belford Roxo, eram também detentores de uma Constituição particular que os isenta de relatar qualquer intercorrência aos superiores ao fim do plantão.

Os PMs dizem que, apesar dos tiros e das porradas, não foram os responsáveis pela bala final. Liberados após uma rápida consulta pelos antecedentes criminais, segundo eles, os jovens já não estavam sob custódia quando foram executados, em algum lugar fora do alcance das câmeras. Um dos policiais tem Custódio no sobrenome e foi um juiz da Central de Custódia que converteu a prisão em flagrante dos juízes-executores em preventiva.

Edson tinha 20 anos e era camelô.

Jhordan tinha 17 e já trabalhava em um lava-jato, como são conhecidos os serviços de limpeza de automóveis que se tornaram sinônimos da limpeza da classe política no Brasil, substituída por uma turma de entusiastas da morte como solução (30 mil, para começar, dizia o presidente quando deputado; 180 mil na pandemia, longe ainda de terminar) e do encarceramento desde a infância. Quanto antes prender, melhor.

Quando saiu de casa com o amigo três anos mais velho, Jhordan não sabia que se tornaria parte de uma estatística macabra em um país onde, todos os dias, ao menos duas crianças ou adolescentes são mortos pela polícia.

Entre 2017 e 2019, conforme levantamento da repórter Thaiza Pauluze, as forças que deveriam proteger seus cidadãos assassinaram 2.215 jovens. Trata-se de uma multidão de Jordans, Joões Pedros, Ágathas, Kauans, Emilys e Rebecas e tantos outros cujas dores sequer saíram nos jornais. As duas últimas estavam perigosamente no portão de casa quando foram alvejadas. Faz só duas semanas e ninguém mais se lembra.

O que é sempre noticiado como acidente, uma confusão entre fuzis e guarda-chuvas ou chuteiras de futebol, parece ter método e contexto. Tem também uma lista de perguntas que quase nunca é respondida, como mostrou o jurista Thiago Amparo em uma coluna recente e necessária.

Em 2015, as vítimas das balas oficiais até 19 anos representavam 5% do total de mortes violentas nessa faixa etária; em 2019, eram 16%. Só no Rio, 99 crianças e adolescentes foram mortos por policiais entre janeiro e junho de 2020, já durante a pandemia, quando sequer poderiam sair de casa para espalhar pânico aos adultos indefesos.

Quando um desses jovens comete algum crime, os defensores da redução da maioridade penal, para quem o destino do Estatuto da Criança e do Adolescente deveria ser a latrina, chegam a berrar por justiça.

Quem pode nos defender desses pequenos monstros?, costumamos gritar quando algum caso nos choca e ganha as manchetes.

Poucos perguntam quem pode defender as crianças dos cascudos e munições dos adultos, de farda ou não. O que fazer com eles quando regimes disciplinares e os remédios, indicados cada vez mais precocemente, já não fazem mais efeito? A ordem implícita é uma só: esfola ou mata.

Hoje candidato a candidato do centro, Sergio Moro, o ex-ministro da Justiça e novo sócio de uma consultoria responsável por levantar empresas destroçadas pela operação que um dia julgou, sorria bovinamente ao lado de Jair Bolsonaro em agosto de 2019 quando o presidente defendeu a celeridade na votação de uma PEC que previa a redução da maioridade penal no país.

Com o jogo truncado no Congresso, o jeito foi dificultar o rastreamento de munições e facilitar a distribuição de armas aos cidadãos de bem e/ou com dinheiro para adquirir um trabuco por R$ 10 mil sem pagar impostos. A medida foi barrada pelo STF, mas a guerra está longe de acabar.

A cena do tiro disparado contra Edson e Jhordan, que carregavam os nomes de dois dos maiores ídolos do esporte, um do basquete, outro do futebol, ambos negros como eles, reforça a ideia de que "Bacurau", aclamado filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, não era distopia; era anunciação.

Mas é na literatura de José J. Veiga que encontramos paralelos ainda mais evidentes desse país ainda a ser revelado. No conto "Acidente em Sumaúma", o mestre do realismo fantástico descreve a morte de um lobo preso e cercado por homens e seus cães de guarda.

Aquele lobo, descreve Veiga, era a imagem da derrota. Bastava vê-lo de língua de fora, puxando ar com urgência, a cabeça inchada de bordoadas, o corpo sangrando, o sangue endurecendo no pelo, para se compreender que ele estava nas últimas, sem despertar pena nem mesmo dos cães, que a certa altura o abandonam. Preferem assustar uma galinha perto dali. "Um pouco mais e até as pulgas estariam desembarcando dele, e então ele ficaria sozinho", descreve o narrador, que assiste à cena passivamente até acordar e se dar conta de que aquele lobo era ele.

Ele, não. Um país inteiro. Um país de meninos e lobos.