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Matheus Pichonelli

O curioso caso do brasileiro que rejeita vacina, cinto e até camisinha

A masculinidade tóxica pode prejudicar o desenvolvimento dos homens, segundo a APA - Getty Images
A masculinidade tóxica pode prejudicar o desenvolvimento dos homens, segundo a APA Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

19/12/2020 04h00

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Pelo cabelo à la Beiçola — personagem de Marcos Oliveira em "A Grande Família" —, não é difícil saber em quem o Almeida votou em 2018. Nem com quem se identifica entre os grupos de apoiadores, detratores e indiferentes, apontados como placas tectônicas nas pesquisas de avaliação do governo.Não é só o cabelo que deixou o nosso antigo vizinho a cara de Jair Bolsonaro.

O "tá ok?" já está incorporado há muito tempo a cada fim de frase. Antes da pronúncia, ele anuncia sentenças. A última: "não vai tomar vacina e pronto. Tá ok?" Já pensou se vira um jacaré? "É direito MEU", costuma repetir, em caixa alta. E não é de hoje.

Muito antes de Bolsonaro fazer do CQC e da Luciana Gimenez o seu palanque, o Almeida já tinha na ponta da língua um argumento irrefutável para fugir de exame médico. Qualquer exame médico. "Quem procura, acha". Melhor não procurar, ele garantia, fugindo de qualquer campanha de vacinação, prevenção ou respostas para as dores que começavam aparecer aqui e ali.

A ascensão do capitão até o Planalto deu a ele um líder político e sanitário para chamar de seu. Deu também um novo léxico sobre tudo o que considerava "frescura" por não reconhecer como legítimo. A começar pelos movimentos de combate ao racismo e defesa dos direitos humanos — para ele e seu ídolo, expressões de "vagabundagem" e "coitadismo".

Até então, dizia não saber, não querer saber e tinha apenas raiva de quem sabia de política. Aposentada a camisa da campanha de 1992 de Paulo Maluf, com a qual dormiu durante anos, nos últimos tempos dizia apenas que direita e esquerda eram tudo a mesma coisa e que ele não era nem uma coisa nem outra. Muito pelo contrário. Era apenas brasileiro.

Como bom brasileiro, o Almeida sempre sabotou como pode o que, nas rodas das conversas sobre estatísticas e evidências científicas, se chama direito coletivo. Para ele, é tudo politicamente correto, uma praga que está há anos destroçando o país. Frescura, diz ele, quando alguém manda colocar o cinto — seja do automóvel, seja das calças, que arrasta e levanta a cada passo.

Frescura, repete, quando pedem para usar capacete antes de sair por aí sobre duas rodas.

Frescura, insiste, quando sobe descalço e sem camisa no telhado para estapear a antena de TV.

Ou quando se nega a tomar remédio quando a febre passa de 40 graus.

O Almeida é um sobrevivente, mas não sabe disso.

Não tem dia que não vitupera contra imagem de São Maluf, seu antigo ídolo, guardada de cabeça pra baixo no copo de água desde que ele tirou do Almeida o seu direito, com reforço ao pronome possessivo, de fumar em restaurante. Quando José Serra o proibiu de fumar no próprio escritório, a querela virou pessoal. Foi ali que o mundo começou a ficar muito chato, ele diz.

Por sorte do Almeida, ninguém registrou em vídeo os inúmeros escarcéus que provoca toda vez que tentou fumar em lugar proibido. Agora, não satisfeitos em barrar o cigarro, os atendentes da padaria, do supermercado e da sorveteria convidam o corpo inteiro que acompanha o cilindro de tabaco a se retirar do estabelecimento por falta de máscara. Querem obrigá-lo a usar o utensílio, mas ele se nega, acusando todo mundo de estar contaminado pelo vírus da frescura. Que mundo é este que quer impedir um homem de espalhar suas verdades e seus perdigotos como bem entende?

O Almeida não gosta que o Estado diga como o indivíduo deve se vestir. A exceção é o filho da vizinha — contra quem defende o uso e a intervenção policial por conta do boné, do gosto musical e do brinco na orelha. O Almeida acha que o filho da vizinha nem gente é, e contra ele até tira a poeira do antigo slogan favorito sobre a Rota na rua.

Sobre a vizinha, não cabe reproduzir o que diz por conta do horário impróprio.

O Almeida acha que daqui a pouco o Estado vai obrigá-lo a usar cueca. A camisinha, para ele, é a maior opressão dos adeptos do politicamente correto ao seu direito de ir e vir. Jura para a companheira que a borracha faz mal, pipoca, dá alergia e dor de cabeça.

O preservativo só dá menos urticária do que ver mulher debater aborto à sua frente. Interdição de debate sobre corpo alheio para ele é refresco. (Ele prefere chamar de frescura).

Como um check list, o Almeida tem gabaritado, uma a uma, as pesquisas de opinião no quesito bolsonarismo. Ele considera o governo patriótico ótimo/bom, não vê qualquer responsabilidade do mito em relação às mortes na pandemia, acredita sempre na palavra do presidente, acha que Bolsonaro fez mais do que o esperado pelo país e garante que não precisa nem mudar os hábitos muito menos tomar vacina para se safar da farsa do "vírus chinês" — segundo ele, uma invenção da ditadura comunista em parceria com o tucano João Doria.

"Lute como homem, não como maricas", diz sua camiseta.

Parentes e conhecidos não sabem como fazer o Almeida mudar de ideia ao menos no quesito "vacinação". Já nem sugerem terapia, porque já não aguentam mais ouvir as histórias sobre como, na sua época, terapia era uma fivela no lombo — é o que ele diz enquanto mostra as marcas da formação de seu caráter toda vez que discursa sobre as propriedades didáticas de uma boa surra.

"Eu bati e apanhei muito e nunca tive problema com isso aí, tá ok?", diz, depois de sorver a oitava garrafa do destilado, o bom cidadão, com aquele riso de dente rangido, a arcada dentária superior fundida com a inferior, como se no fundo quisesse apenas chorar em paz sem que alguém mandasse parar de frescura.

O Almeida não é só um cidadão teimoso com uma ideia própria sobre direito à opinião. É quase um terço do país.