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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Seringas de vento': roubar vacina de idoso é pior do que bater na avó

Karl-Josef Hildenbrand/Getty Images
Imagem: Karl-Josef Hildenbrand/Getty Images

Colunista do TAB

18/02/2021 04h00

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Imagens de profissionais da saúde aplicando uma "injeção de vento" em pessoas idosas foram registradas em diversas cidades do Brasil desde a semana passada. Apesar do choque justificado, é preciso reforçar: são casos isolados, e não podem nem devem minar a confiança na vacinação, que até aqui já beneficiou mais de 5,5 milhões de pessoas.

Feita a ressalva, devo dizer que sou um dos muitos que até agora tentam entender o que motivou o crime flagrante — isso, claro, se não ficar provado que tudo não passou de algum engano ou erro humano.

No burburinho que as cenas provocaram, muita gente manifestou a desconfiança de que certos (maus) profissionais foram cooptados por algum esquema de desvios de recursos. Pela lógica, eles fingiriam aplicar a vacina de coronavírus no paciente quando, na verdade, o imunizante era guardado para quem podia pagar, numa espécie de mercado paralelo.

Seja como for — e caso seja mesmo comprovado o crime — o Brasil terá atingido um novo limite de perversidade, que antes desovava numa velha expressão: "pior do que bater na avó". Nada será pior do que negar uma vacina a quem é de direito. Pior ainda quando a pessoa ludibriada é quem tem mais chance de contrair um vírus mortal enquanto imagina estar imunizada.

Se alguém não consegue levar isso em conta e se revolta — com palavras, dinheiro e outros golpes — contra a fila prioritária da vacinação, é porque falhamos há muito tempo. Muito antes de a caixa do etarismo (discriminação contra pessoas mais velhas) ser destampada pelo surto de covid-19.

Se não é isso, o que explica alguém destilar tanto ódio, em uma postagem da Unicef no Facebook, informando que o humorista Renato Aragão, de 86 anos, acabava de ser vacinado? "Os idosos não deveriam ser prioridade, está (sic) deveria ser para quem está indo pra rua trabalhar e não para quem deveria estar em casa", escreveu um revoltado online. "Que se foda esse velho escroto tanta gente mais relevante pra ser vacinada", vomitou outra.

Manifestações do tipo proliferaram como praga na postagem, mas não foram parar ali à toa.

Desde o começo da pandemia, era possível ouvir a voz de autoridades, replicadas aos montes, de que o coronavírus era uma doença que "só" causaria mal em pessoas mais velhas ou com comorbidades. O "só", aqui, não é detalhe.

Não é verdade que pessoas com histórico de atleta, jovens e produtivos, não corram riscos — embora não sejam as vítimas preferenciais do vírus. Mas quando se admite que tudo bem, "só" alguns têm mais chances de contrair a doença e adoecer, fica subentendido quem tem (e quem não tem) a prerrogativa de seguir vivo. Numa sociedade que privilegia a produção e o consumo, alguns são motores do desenvolvimento; outros são um peso. E como peso, tanto faz viverem mais dez ou 20 anos.

Pela lógica, os demais — jovens, fortes e dispostos — devem se cuidar, mas não podem perder de vista a missão de não deixar que as mortes de CNPJs se tornem epidêmicas.

Meses atrás, um grupo de empresários se articulou para abrir a carteira e promover um programa de vacinação paralela a uma parte privilegiada e produtiva da população: seus empregados e colaboradores. A mensagem era clara — quem não está no jogo, que se vire.

No caso das "vacinas de vento", fica a impressão de que o sujeito supostamente cooptado aceitou que o paciente com o braço estendido à sua frente merecia menos os anos de vida que poderiam garantidos com a dose do imunizante. "Ele já viveu o que tinha que viver", costumamos minimizar quando somos informados da morte de uma pessoa mais velha. O contrário causa espanto.

No livro "A Nova Razão do Mundo", os autores Pierre Dardot e Christian Laval mostram como a lógica da competição mortífera do neoliberalismo modelou a vida social e nossa subjetividade a partir dos valores do mercado e do dinheiro — e não só o sistema econômico em vigor. Para os autores, direitos como proteção social, igualdade de tratamento e universidade passam a ser questionados o tempo todo pela concepção consumista do serviço público. Assim é criada a figura do "sujeito ao qual a sociedade não deve nada".

Puxando por aqui, as pessoas mais velhas (ou mesmo as que dependem de uma rede de proteção estatal e familiar para sobreviver) são antes de tudo dispensáveis, descartáveis e indesejáveis. Não precisam da vacina porque não produzem e já não têm nada a oferecer — nem histórias, nem subjetividade nem os caminhos que nos conectam à ancestralidade nesse contexto em que a urgência do instante se impõe.

Só quem, na vida adulta, teve ou ainda tem o privilégio de ouvir o que têm a dizer os avôs e avós em meio a uma crise existencial pela qual eles já passaram inúmeras vezes sabe o que isso significa. O contrário é como descartar um livro escrito no século 20 por imaginar que ele já não nos diz respeito. Trocaríamos, então, toda a literatura por um curso de como enriquecer no YouTube e levar em paz uma vida materialmente farta e sem sentido.

Essa ideia não começa nem termina no flagrante de uma falsa aplicação de vacina. Mas, ao que parece, isso é a materialização mais clara desse tipo de discurso. Há um mundo que desaparece quando uma pessoa com 70, 80, 90 anos deixa de existir — seja quando ela deixa de ser ouvida, é trancafiada num quarto em direção ao esquecimento ou quando seu direito à vacina passa a ser visto como privilégio ou desperdício.

Quando minimizamos a gravidade de uma pandemia dizendo que "só" alguns, os improdutivos, morrerão, contratamos para quitar no futuro o tratamento que dispensamos a eles quando acreditávamos estar no auge da forma física e do desempenho produtivo.