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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Esquete do Porta dos Fundos com Caetano faz lembrar por que fujo do TikTok

Caetano Veloso e Paula Lavigne em esquete do Porta dos Fundos - Reprodução
Caetano Veloso e Paula Lavigne em esquete do Porta dos Fundos Imagem: Reprodução

Colunista do TAB

27/10/2021 04h01

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Depois do verbo, o princípio é o meme.

Pouco importa o quanto cantamos "O Leãozinho" para meu filho quando ele era bebê e já se auto-acalentava, como a criança da nova música do Caetano Veloso. Para ele, o Caetano é (será sempre?) o personagem de cabelos longos que certa vez manifestou incredulidade com a burrice de uma pergunta num programa de TV.

"Não, cara, cê é burro. Que loucura."

A fala — aliás, uma fração dela — é peça onipresente em qualquer vídeo curto, editado, cheio de enxertos, que ele agora assiste no YouTube.

Um dia, ao ouvir a velha música e ativar algum lugar da memória, ele me perguntou se eu não achava a voz "daquele cara" um tanto parecida com a do rapaz esquentado que no meme chamava o interlocutor de burro.

O encontro entre eles se deu pelo caminho inverso.

De um tempo pra cá, meu filho, agora com oito anos, tem me perguntado por que não estou no TikTok, seu novo sonho de consumo — e onde os amigos já postam e compartilham vídeos com um gestual que já não reconheço. A última atualização do meu software particular parou no Instagram.

Tenho receio de que, daqui a 15 anos, quando for chamado a pensar na formatação e divulgação de algum trabalho artístico — digamos o novo álbum do Caetano, lançado por ele aos 90 anos — meu filho faça o mesmo papel dos personagens de Gregório Duvivier e João Vicente no mais recente esquete do "Porta dos Fundos".

O esquete mostrava o desconforto do compositor, que se reiventa e se reinventou diversas vezes, ao ouvir os pitacos de dois produtores escalados para divulgar seu novo trabalho, "Meu Coco" — um conjunto de ensaios, em forma de música, sobre os impasses de uma era mediada por "anjos tronchos do Vale do Silício", como ele descreve e canta em uma das faixas.

O espanto do personagem real na peça ficcional é o espanto de todo mundo que já identifica, nas novas plataformas, uma grande ruptura. Por ironia, o app que criou este vórtice e está no centro da esquete foi criado por chineses, não por querubins da Califórnia.

Para tornar o "produto" mais vendável, os estrategistas da ficção praticamente sugerem que o trabalho do cânone seja retalhado para caber em um mundo onde 3 minutos é tempo demais. Esse tempo não cabe em uma música ou em filmetes nos quais os gestos, e as dancinhas, são a mensagem, não o meio. Aqueles produtores da ficção eram, antes de tudo, ignorantes — mais do que isso, não tinham a menor vergonha disso. Naquele território de fronteiras borradas entre criação e divulgação, os chamados gênios do marketing estavam à vontade para picotar o próprio "produto" para caber na embalagem.

As sugestões que mediocrizam e infantilizam o artista e sua obra só não beiram o surrealismo porque têm dois pés na verossimilhança. Dias atrás, amigos que trabalham em um jornalão, conhecido pelas tintas sisudas e que tenta agora se modernizar, entraram em pânico com uma estranha orientação das equipes de marketing: como os "jovens de hoje em dia" (sic), os repórteres e editores deveriam divulgar o novo formato do impresso com dancinhas tipo TikTok e uma hashtag.

Entendo a necessidade de atingir uma geração que vê, no papel impresso ou no CD, pequenas peças de museu, artefatos cringe de outras eras. Mas me questiono se esse imperativo constante de rejuvenescimento não seria a própria morte do conteúdo. Se sim, que é que pode ser a salvação?

Não consegui rir do esquete com a participação ilustre. Se ri foi de nervoso.

"Sabe todos os livros, os filmes e as músicas que você consumiu ao longo da vida e que participaram de sua formação e de sua memória?", perguntou o advogado e professor Ronaldo Lemos, em um ensaio recente publicado na Folha de S.Paulo, antes de sentenciar: "Tudo isso tem cada vez menos valor para nossa experiência coletiva".

A "Grande Ruptura", como ele chamou o fenômeno, é derivada de uma nova forma de representação e comunicação para a qual o cânone é irrelevante ou não tem significado textual, apenas instrumental. O que vale a partir de agora é a experiência imediata do usuário, inclusive emocional, "mais do que suas preferências e gostos acumulados culturalmente na memória".

Nessa nova lógica, na qual qualquer história é sempre um "denso algoritmo que vende venda a vendedores reais" (feat. Caetano), a cultura se transformou em pastiche. "Nada de novo se cria", escreve Lemos. Ao contrário, tudo é remix ou releitura.

Consciente ou não, foi isso o que o esquete conseguiu capturar quando os personagens da ficção sugerem ao personagem real que ele incorpore no novo álbum elementos de velhos sucessos — os únicos que eles conheciam e desconheciam ser de outros compositores. Não consegui conter a vergonha imaginando a cena, mesmo sendo uma paródia.

(Tenho dois grandes medos diante de um ídolo, e o Caetano de todos talvez seja o maior: pensar que ele pode me achar um idiota ao me apresentar e descobrir que a impressão é correta.)

No meme que atravessou as gerações e chegou ao meu filho, Caetano chama de burro o entrevistador que viu onde não havia uma contradição entre suas músicas e sua inserção, como numa suposta apropriação indevida, em um veículo de massas como a TV.

No esquete, ficamos esperando o personagem real resgatar o meme para responder à altura e chamar de "burros" os criadores disruptivos de sapatênis das novas plataformas. Em vez disso, o que ele apresenta é uma expressão de espanto.

Talvez porque sente, como muitos de nós sentimos, que algo se perdeu, algo se quebrou e está se quebrando. Mais do que nos tempos em que era preciso ouvir com atenção os deles e os delas da TV Globo, como o próprio Caetano cantava na música "Língua". Ou não?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL