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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tarados por vacina? Com Bolsonaro, 'Não olhe para cima' virou série real

 Bolsonaro chama de "tarados por vacina" quem defende imunização e diz desconhecer mortes de crianças por covid; já foram 300      -  Foto: Reprodução.
Bolsonaro chama de "tarados por vacina" quem defende imunização e diz desconhecer mortes de crianças por covid; já foram 300 Imagem: Foto: Reprodução.

Colunista do UOL

08/01/2022 04h00

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A ameaça é identificada — e confirmada — por um time de especialistas. A chance de dar ruim, eles alertam, é próxima de 100%.

Com os dados do monitoramento em mãos, os cientistas vão até as autoridades públicas pedirem providências. Descobrem que, tão ambiciosas quanto despreparadas, essas autoridades estão ocupadas com outros planos. Não querem despertar a histeria em uma população já assustada com o estresse climático, a seca, as chuvas, a crise econômica, a inflação, o bug dos sistemas digitais. A população em breve vai às urnas e não pode sair da órbita.

O jeito é deixar para depois o que pode ser resolvido com uma comunicação simples, rápida e eficiente — embora dolorosa e impopular.

Os mensageiros correm para avisar, eles mesmos, sobre os riscos da tragédia. Apelam aos meios de comunicação, mas os meios de comunicação, para atingir o grande público, deixaram distante a linha que separava a informação e o entretenimento. Entre o fato e a notícia está uma nação infantilizada e idiotizada, incapaz de encarar a maior ameaça à vida na terra sem os filtros do deboche e as lentes do escapismo.

Como robôs programados para repetir os mesmos comandos e as mesmas frases sobre tudo, parte da população reage contra o que dizem os cientistas, apontados como alarmistas e/ou integrantes de uma conspiração internacional para esgarçar a liberdade do militante de rede social. A mensagem é ignorada e os mensageiros, escrachados — quando não perseguidos por fazerem seu trabalho.

Até que a ameaça começa a se materializar — basta olhar ao redor, para cima ou para baixo, e perceber.

Os governantes, tardiamente, resolvem agir. Têm os meios para isso. E percebem que podem faturar eleitoralmente com a fama de quem derrotou o mal. O inimigo comum, afinal, unifica a população. É a brecha para a criação do mito dos heróis, resgatado das glórias de um passado de guerras. O general entra em cena.

Mas um empresário e financiador de campanha vê na crise uma oportunidade. Salvar vidas é importante, claro, mas e os negócios? Gente que nunca se preocupou com quem passa fome começa a espalhar a ideia de que é possível faturar com a ameaça com soluções fáceis (e claramente ineficazes), manter a normalidade e acabar com a miséria no mundo. Basta acreditar e manter o pensamento positivo.

A solução é, por natureza, política — aquela seara em que gestores públicos definem estratégias de mobilização de esforços, talentos e recursos para proteger quem os elegeu. Mas quem exige resposta do tipo é logo acusado de politizar a questão. Por que olhar o problema de frente se podemos olhar para o lado? Ou para baixo? Por que não posso acreditar no que eu quiser? Olhar para onde quiser? Por que não acreditar que as lideranças públicas e empresariais realmente sabem o que estão fazendo e se preocupam com a população?

O resultado é uma grande catástrofe.

Não, você não está lendo a sinopse (ampliada, é verdade) de "Não olhe para cima", filme de Adam McKay em cartaz na Netflix — e que homenageia o elenco de trapalhões reais escalados para lidar com nossos meteoros particulares no momento mais grave da história. (Dos arquétipos da versão ficcional, não faltou nem o personagem responsável pela comunicação oficial, com assento em gabinetes paralelos, que tem como único mérito ser filho da presidente).

Há dois anos (e não seis meses, como no filme) as versões reais dos personagens de Leonardo Dicaprio e Jennifer Lawrence estão gritando que o coronavírus e suas variantes são exterminadores de populações e que só a vacina pode salvar — a vacina, não a cloroquina ou os remédios para vermes vendidos como solução para um país que não pode parar — "se não acaba o meu governo".

Visualizado meses antes pelo telescópio da saúde pública, o cometa do coronavírus já explodiu por aqui produzindo fissuras e estragos, com saldo de quase 620 mil mortos.

Em vez de cena final, em que até a corrida espacial dos bilionários é retratada, o que temos por aqui é um grande dia da marmota debaixo dos destroços.

A sorte, para quem não gostou do filme, é que ele acaba em duas horas e 25 minutos. Por aqui, o drama nacional virou série e é atualizado com um novo episódio a cada dia.

O roteiro de presepadas acaba de entrar na terceira temporada com a versão real da presidente Janie Orlean chamando os que alertam para os riscos de uma nova variante de "tarados" por imunizantes e mostrando, ele sim, uma tara incompreensível em deixar crianças desprotegidas da cobertura vacinal.

O presidente que não enxerga nem sente nada além da própria pele ou experiência jurou também no episódio anterior que não conhece uma única criança morta por covid. (Até o momento, 300 crianças de 5 a 11 anos já morreram, e o drama de quem as perdeu não é uma conta matemática, como mostrou a repórter Claudia Castelo Branco no TAB).

Por que o líder da nação, que poderia unificar um país inteiro em torno da vacina, insiste nessa conversa? A essa altura, é a pergunta que vale um milhão de doses.

"Eles nem são espertos para serem malignos como vocês acham", vaticina a cientista interpretada por Lawrence a certa altura do filme. Pois é, a verdade definitivamente é ainda mais deprimente do que parece.