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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Tapa de Smith subverteu recado da Academia ao premiar 'No ritmo do coração'

Will Smith e Chris Rock protagonizaram briga no Oscar - Reprodução / Internet
Will Smith e Chris Rock protagonizaram briga no Oscar Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

30/03/2022 04h00

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No último domingo (27), por insistência de meu filho, fomos ao cinema, após mais de dois anos, para finalmente conferir "Homem Aranha - Sem volta para Casa".

Desde que voltamos para casa, tenho a impressão de que o Doutor Estranho de Benedict Cumberbatch segue abrindo portais em direção ao multiverso. Entendedores entenderão.

A festa da entrega do Oscar aconteceu horas depois e o resto do roteiro é conhecido: Will Smith atravessou uma espécie de portal entre a plateia e o palco e acertou uma muqueta no rosto do apresentador Chris Rock. Era como se duas pontas da velha TV do fim da nossa adolescência tivessem se dobrado para colocar no mesmo ringue os criadores e as criaturas de Um Maluco no Pedaço e Todo Mundo Odeia o Chris. Multiverso que chama?

Feita a oferenda, Smith, que estava irritado com uma piada estúpida feita por Chris Rock sobre a aparência de sua mulher — Jada, que sofre de alopecia — voltou ao seu assento. Na mesma noite, ele recebeu o Oscar de melhor ator por sua atuação em "King Richard: Criando Campeãs". Chorou, pediu desculpas e atravessou outro portal.

Cada vez que a cena era revista, um personagem interpretado por ele parecia cruzar aquela fronteira entre ficção e realidade. Não teve alma insone que não tenha amanhecido na segunda-feira (28) sem se perguntar se aquele tapa era real ou encenação, uma torta de climão ou parte da festa. A simples confusão diz muito sobre nossa perda gradativa da dimensão do real.

Eu só me perguntava em que momento Smith não teria incorporado, na noite de sua consagração, não a sua versão adolescente — inconsequente como qualquer adolescente que precisava correr para o colo do Tio Phill a cada nova encrenca — mas o próprio personagem que o levou ao grande prêmio de sua grande noite.

Richard Williams não era exatamente um devoto da diplomacia, embora tenha corrido para condenar a agressão de seu intérprete. Parece tipo. Em uma das cenas de "King Richard", ele quase voa no pescoço de um postulante a empresário de suas filhas, as tenistas Venus e Serena Williams, ao ouvir que era inacreditável o que ele tinha conseguido com elas. Inacreditável por quê?, ele questiona. É inacreditável que pessoas negras consigam vencer em um esporte majoritariamente branco?, pergunta.

Williams, o personagem real e o interpretado por Smith, é recorrentemente trucidado pela postura agressiva e controladora com que gerenciou a carreira das filhas. Era ele quem decidia, ou tentava decidir, a hora certa de elas pisarem na quadra como profissionais. E o quanto poderiam receber por seus talentos. Sabia que o açodamento era a receita da tragédia que marcava a trajetória interrompida dos destaques das categorias de base daquela época. Sem a mediação do adulto, e um adulto furioso quando precisava ser, aquelas crianças e seus talentos precoces seriam simplesmente jogadas aos leões.

"Minha mãe sempre dizia que a criatura mais poderosa e perigosa desse mundo inteirinho é uma mulher que sabe pensar. Ela consegue qualquer coisa", diz King Richard para as filhas enquanto guia, simbolicamente, seus trajetos em uma kombi caindo aos pedaços.

Dele, que precisou dar a cara a tapa e apanhar literalmente para ver as garotas treinarem em uma quadra pública de sua cidade, pode-se dizer qualquer coisa, menos que não acertou seu prognóstico: uma das filhas seria em breve a melhor tenista do mundo; outra, a melhor da história.

Esse espírito do sujeito agressivo e superprotetor entrou em cena por algum portal aberto em um dos poucos teatros em que os atores devem se despir dos personagens e deixá-los no cabide. Ao menos em condições normais de pressão e temperatura.

Mas não estamos em uma situação normal, por mais que a ausência de máscaras nos rosto sirva como marca de uma retomada tão inevitável quanto impossível.

Um amigo, que por uma fresta observou as suas redes sociais e percebeu que aquele tapa estalaria por muito tempo em outros e outros portais, públicos e privados, resumiu a situação: "As pessoas estão cansadas, frustradas, empobrecidas e saindo agora de um luto de dois anos em que tudo mudou para pior. Logo, não há discussão que não vire uma hecatombe".

Will Smith entrou por esse portal e dele, desde então, não conseguimos mais sair.

Meu amigo sentiu o cheiro da encrenca e resumiu como seria o dia: uns diriam "mereceu", outros, "que absurdo"; a turma do "isso não é importante" logo entraria em cena e em breve a discussão seria um grande briga entre os que diziam "ele defendeu a mulher" e a ala do "foi macho escroto". Foi exatamente o que aconteceu.

Minutos se passaram e os protagonistas da cena já haviam sido substituídos nas redes pelos personagens de quem não gostamos. Saía do palco o rosto abatido de Chris e entrava o dos candidatos a presidente no Brasil em 2022. O multiverso, amigos e amigas, ele é implacável.

O curioso é que a festa do Oscar, antes do tapa, estava toda montada para suprimir a mensagem do filme que melhor dialogou com o espírito deste tempo ignorante, orgulhoso da própria ignorância e, embrutecido: "Ataque dos Cães", de Jane Campion.

Nesse outro portal no canto da tela o Doutor Estranho de Cumberbatch se metamorfoseou em um complexo vilão de velho oeste, reprimido e violento, que precisa ser contido violentamente para que alguma justiça seja estabelecida no povoado onde ele fez da vida de sua cunhada (Kirsten Dunst) um inferno. O filho dessa mulher logo entende que não conseguirá conter o touro bravo com flores. Lá, como cá, estamos todos em guerra.

O prêmio principal da noite para "Coda - No Ritmo do Coração" parecia sinalizar outra mensagem. Podemos esquecer a guerra por instantes? Podemos só nos emocionar e absorver essa história fofa de superação? Vejam só como a talentosa Ruby Rossi (Emilia Jones) soa melhor aos nossos olhos e ouvidos cansados de luta. Vejam como ela consegue atravessar esse corredor polonês de bullying e preconceitos contra os pais surdos e empobrecidos e, com um pouco de doçura e outro de imposição, recriar um novo mundo sem precisar agredir ninguém.

Era isso o que a Academia tentava comunicar ao mundo quando Will Smith cruzou o palco (o portal?) e provou que, fora das cartas de boas intenções, e das más, estas embrulhadas numa caixa de piada ruim, o ritmo do nosso coração está mais propenso a reproduzir um ataque dos cães do que uma música de coral.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL