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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Caso Mocotó mostra como elite 'topzera' perverteu até conceito de inclusão

Dono do Mocotó transformou seu restaurante num centro de produção de marmitas para população vulnerável - Bruno Santos/ Folhapress
Dono do Mocotó transformou seu restaurante num centro de produção de marmitas para população vulnerável Imagem: Bruno Santos/ Folhapress

Colunista do TAB

22/06/2022 04h01

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Vale um estudo de caso a troca de mensagens entre Rodrigo Oliveira, chef e proprietário do restaurante Mocotó, em São Paulo, e uma ex-futura-cliente chamada Sandra.

Com a pretensão de dar um toque em um dos mais premiados cozinheiros do país, a ex-futura-cliente enviou uma mensagem curtida no preconceito ao contar sua decepção em saber que o tão falado restaurante ficava na Vila Medeiros, uma "localização tão perigosa e precária", segundo ela.

Dias antes, Sandra foi até o local com outras 15 pessoas. Todos ficaram com medo do bairro.

Na mensagem, ela fez questão de dizer, em caixa alta, que morava no Tatuapé, novo "centro" dos novos ricos da capital paulista, e que torcia para Oliveira levar o seu empreendimento Guia Michelin para lá, um bairro maravilhoso e cheio de bons restaurantes.

A mensagem parecia despretensiosa. Simpática até.

Mas nas entrelinhas era possível entender como uma certa bolha da elite brasileira se esforça para comprar e desvirtuar o conceito embutido na palavra "inclusão".

Inclusão, para Sandra, passa por uma compreensão de centro e de periferia em oposição. Esse centro, mesmo que não seja geográfico (Tatuapé é a parte nobre da zona leste), é onde pessoas como ela habitam. Lá, como numa chave de concessão, escolhe-se quem pode ou não entrar e fazer parte.

A mensagem para o chef de um bairro afastado da zona norte era uma espécie de convite. Era como se dissesse: "Do lado de cá do muro e das cercas eletrificadas você é bem-vindo e pode nos servir. Vai nos poupar do constrangimento de atravessar o fosso que separa nosso bairro do seu".

Oliveira compartilhou a mensagem sem expor a mensageira. E fez questão de tornar sua resposta um posicionamento público.

"Justamente por existir gente que ainda pensa como você que continuamos morando e empreendendo na Vila Medeiros. Assim, quem sabe um dia nosso bairro vai estar (ainda mais) cheio de negócios de sucesso e de oportunidades pras pessoas que vivem aqui."

O Mocotó é uma casa especializada em comida sertaneja. O que hoje é reconhecido como o 33º melhor restaurante da América Latina, segundo a revista britânica Restaurant, começou em 1973 como uma venda de produtos do norte fundada por José de Almeida, pai de Rodrigo.

José nasceu em Mulungu, no sertão pernambucano, e trabalha em São Paulo desde os 25 anos. Seu negócio está prestes, portanto, a completar 50 anos. Não devem ter sido poucas as vezes que esbarrou com os habitantes dos "bairros maravilhosos" durante a trajetória.

No auge da pandemia, a antiga casa do norte se transformou num ponto de distribuição de marmitas gratuitas para pessoas em situação vulnerável do bairro — justamente os mais afetados pelas consequências do coronavírus. Quem tem bons vizinhos tem tudo.

Naquele restaurante tem um pedaço do Brasil inteiro. Tem um cearense de Amontada que atuava no setor de logística da Força Aérea e hoje é responsável pelo setor de compras do Mocotó.

Tem uma mestre em história especializada em hábitos alimentares brasileiros que nasceu no ABC e hoje cuida da comunicação do restaurante.

Tem gente de Palmeiras dos Índios, a cidade onde viveu Graciliano Ramos, no interior de Alagoas, de Lagoa do Itaenga (PE), e também de São Paulo. Tem até um "nativo da Vila Medeiros".

A trajetória dos integrantes da equipe pode ser conferida no site do Mocotó.

Este caldo de diversidade fez com que o restaurante se tornasse uma referência e acumulasse prêmios aqui e lá fora sem pedir licença para dona Sandra. Inclusão no fim é isso: pensar em outras formas de estar no mundo.

Rodrigo Oliveira conta que nasceu e cresceu na Vila Medeiros, onde vive até hoje, e demorou para entender que existiam "outras São Paulo" perto e longe dali. A verdade, afirma ele, é que a desigualdade é tão grande quanto a cidade.

Guimarães Rosa escreveu certa vez que o sertão é do tamanho do mundo e está em toda parte — inclusive dentro da gente. O sertão é também na Vila Medeiros e perigosa e precária é só a visão de mundo de quem se autodenominou "o centro" e passa a vida toda tentando digerir a própria arrogância.