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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem associa autismo a hype não tem ideia do que está falando

A atriz Park Eun-bin, na série sul-coreana "Uma advogada extraordinária", da Netflix - AFP
A atriz Park Eun-bin, na série sul-coreana 'Uma advogada extraordinária', da Netflix Imagem: AFP

Colunista do UOL

02/09/2022 04h01

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Woo Younh-woo, protagonista da série sul-coreana "Uma advogada extraordinária", é brilhante.

Contratada por um grande escritório de advocacia, ela compreende nuances que os colegas de profissão não observam nos processos comuns. Ela é estudiosa, tem memória aguçada e conhecimento profundo sobre os assuntos de sua especialidade. Mas Woo Younh-woo tem um problema: ela é estranha para os olhos de quem convive com ela.

A personagem tem dificuldade em manter contato visual, anda e se veste de maneira peculiar, gosta de puxar assuntos aparentemente fora de pauta e tem dificuldade de entender quando alguém está brincando e, mais ainda, de disfarçar o que pensa. Isso faz com que ela seja tratada como alguém sem noção — nem da hora nem dos códigos sociais dos lugares onde transita em paralelo com seu universo expandido e particular. Woo Younh-woo é autista.

O retrato, ao menos nos primeiros episódios da série da Netflix, leva a crer que ela sofre com um transtorno do espectro autista (TEA) de nível moderado. Isso significa que, apesar da inteligência fora do comum, Woo terá sempre dificuldade de se comunicar de forma verbal e não verbal.

Suas habilidades sociais são limitadas e sua inflexibilidade em determinados momentos vai sempre chamar a atenção de todos ao redor.

Pessoas como ela têm dificuldades imensas de quebrar a rotina e padrões de comportamento repetitivos e muitas vezes carregados de estereotipia — como piscar, emitir ruídos, falar sozinho(a) ou mexer as mãos o tempo todo. Qualquer ruído ou mudança brusca nos planos pode levar a uma crise profunda e sufocante.

Graças ao carisma da personagem, a série tem levado uma multidão a entender o autismo, e as pessoas do espectro, com outros olhos.

Quem vê sua rotina passa a entender que ela não é uma pessoa com uma doença que a incapacita e a impede de viver em sociedade. É apenas alguém com um neurodesenvolvimento atípico. Não significa que ela vive num mundo paralelo. Significa apenas que seu modo de pensar e estar no mundo é... diferente.

Houve quem entendesse a série como um sinal de que, hoje em dia, ser autista virou moda e seu diagnóstico, uma tendência em estilo hype. Isso porque, para uma economia de mercado que exige "inteligência e memória de gênio", o autismo teria virado um "plus" com qualidades cognitivas invejáveis para qualquer empregador. Ah, tá.

A melhor resposta veio de uma integrante de um grupo que reúne pessoas do espectro no Facebook: "Bom saber que sou um gênio. Pena que isso não muda o fato de eu não conseguir trabalho há 20 anos".

De fato. Quem convive com pessoas do espectro sabe o nível de sofrimento que é tentar levar subjetividades e modos de compreensão peculiares do mundo a lugares pautados pelas convenções sociais baseadas em imagens e superficialidades.

Um garoto próximo do meu círculo de relacionamento, digamos assim, foi diagnosticado aos quatro anos como autista leve, sob protestos dos pais que até então compreendiam suas crises de fúria como "frescura", coisa de criança sem limite. Os episódios o levavam a se autoagredir e sair correndo, toda vez que era contrariado, Quem desconfiou foi a direção da escola ao ver que a criança passava os intervalos escondida, às vezes debaixo da mesa, com medo da hostilidade dos amigos quando tentava entrar nas brincadeiras.

Aquele diagnóstico foi a melhor coisa que poderia ter acontecido.

Serviu como uma chave para entender e respeitar as dimensões de um mundo que estava sendo construído dentro de casa e começava a se expandir. Não, aquele menino não era uma "criança comum". Quando gostava de um assunto, levava o interesse aos limites de cada detalhe. Parece ótimo, mas nem sempre é.

Primeiro o hiperfoco estava nos jogos de videogame. Depois, em estátuas. Sim, estátuas: com cinco anos de idade, a criança sabia de cabeça o tamanho, o material e a localização, da China até Santa Catarina, das maiores estátuas do mundo.

Os adultos achavam incrível; as crianças o isolavam. Ninguém, afinal, queria falar sobre estátuas quando o assunto eram filmes de super-herói.

Com a idade, o hiperfoco mudou. O menino agora entende tudo de futebol. Não fala só sobre os resultados da rodada: sabe de cabeça os hinos e o número de conquistas estaduais dos times do Rio Grande do Sul ao Pará. Sabe quem foram os campeões e vices do Brasileiro e da Libertadores desde o primeiro torneio. E quais as cores e distintivos de quase todos os esquadrões da Copa dos Campeões da Europa — além dos hinos.

Os meninos da escola sabem apenas que a bola é redonda e pode ser chutada; mas ao menos ela serve como ponto de interesse comum (na segunda-feira, a única pessoa com quem a criança pode comentar os resultados da rodada e prospectar pontos no campeonato é o porteiro).

Parece bacana, né? E é.

Só que o mesmo menino tem dificuldades básicas. Tipo compreender o que alguém quer dizer quando a frase não é 100% literal. Ou sentar para comer. Não tem santo que o faça ficar parado enquanto almoça; durante a refeição, ele vai pegando a comida aos poucos, geralmente com a mão, sem talher, e sai mastigando pela casa falando sozinho.

É engraçado, mas os pais se preocupam: os amigos do escritório vão achar cool se ele fizer isso nos almoços da firma? E se o chefe estiver presente? E se alguém puxar papo sobre qualquer assunto fora do hiperfoco dele? (Spoiler: pessoas neuroatípicas costumam não dar a mínima para assuntos relacionados a dinheiro, compras ou marcas de carro e roupa. A não ser que o produto tenha um logotipo legal. E, bem, digamos que não é fácil manter dois minutos de conversa "normal" em um mundo em que ter e parecer são mais importantes do que simplesmente... ser).

Aos poucos, os pais do garoto adaptaram a rotina, a estrutura da casa e a abordagem no tratamento com o filho. Tiraram a palavra "frescura" do dicionário e agora tentam entender os gatilhos que levam a criança a espanar, de quando em quando.

Tudo isso tem sido construído com a ajuda de especialistas, terapia e concessões — em alguns casos literais, como a instalação de uma cama elástica, onde ele passa horas pulando e conversando com jogadores invisíveis, na garagem; o carro que durma no relento.

Quem vê acha uma graça. Mas, e quando chegar a adolescência? Como vai se relacionar quando tudo isso migrar para o campo afetivo? E, mais à frente, no campo profissional? Será que ele vai um dia conseguir trabalho na área de seu hiperfoco? Ou vai ser sempre tratado como o chato sem noção que quer mudar de assunto toda hora e quase sempre afasta amigos por causa de seus sincericídios?

(Dica: se você quer saber se está bonito ou bonita e quer apenas resposta positiva para a autoestima, nunca se arrisque a perguntar a opinião de um TEA.)

Dias atrás, antes de um atendimento, uma amiga médica ouviu de uma mãe que o filho prestes a entrar no consultório era autista leve. Aquela informação mudou toda a abordagem: a médica não estranhou o fato de o jovem parecer não prestar atenção ao que ela dizia ou por sorrir apenas na hora imprópria (não, ele não estava rindo dela); nem pelo fato de não ter dado nem oi nem tchau, embora tenha feito todo o combinado durante o tratamento.

Se não soubesse que se tratava de um paciente no espectro, e não tivesse conhecimento do que isso significa, a médica certamente o julgaria como um rapaz arrogante, ingrato e mal-educado.

Ela sabia disso, mas e o resto do mundo? Vai tratá-lo a pontapés quando for julgado como "chucro" demais para merecer nosso acolhimento e amizade?

Perguntas assim angustiam pais e pessoas no espectro. Por muitos anos a falta de diagnóstico fez com que uma multidão passasse pelo mundo apenas como pessoa "estranha", que não compreendia o mundo nem merecia compreensão.

Séries como "Uma advogada extraordinária" podem até forçar a mão no estereótipo, mas ajudam a compreender o fenômeno, fazendo com que o espectador olhe com uma outra perspectiva — uma perspectiva que pode, sim, ser incrível, mas não é destituída de perrengues, crises, julgamentos sociais e sofrimento constantes.

Há quem chame isso de modinha.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL