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Diretor de série sobre Independência: 'D. Pedro 1º era só um despótico'
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A família real desembarcou no CineSesc, sala de projeção da rua Augusta, em São Paulo, na manhã da última terça-feira (30).
Enquanto o coração real de D. Pedro 1º perambulava pelo país em um relicário envolto em formol, com honras de chefe de Estado, o ator Daniel de Oliveira, intérprete do imperador na minissérie "Independências", conversava com jornalistas durante o lançamento da obra dirigida por Luiz Fernando Carvalho. O primeiro episódio vai ao ar na TV Cultura em data simbólica: 7 de setembro.
Durante a conversa, parecia inevitável falar sobre a víscera de seu personagem, trazida ao país em meio às celebrações pelo bicentenário da Independência.
"Acho um espetáculo midiático. Uma coisa de mau gosto que desrespeita um pedido do próprio D. Pedro para deixar seu coração lá (em Portugal). De repente o Bolsonaro traz esse coração pra cá, com risco de se deteriorar, e é a gente que está pagando isso. Acho que o Brasil tem outras prioridades", diz o ator, em uma roda de conversa com a reportagem ao lado da atriz britânica Louisa Sexton, que na minissérie vive a princesa Leopoldina.
Ela sorri ao saber que no Brasil de 2022 um autoproclamado príncipe brasileiro tinha como plano reunir o coração aos restos mortais do pentavô durante a estadia do órgão no país. Ela diz ter se impressionado ao viver na TV uma história real e radical que deixou de fora, em sua versão oficial, o papel das mulheres no processo de independência. Só não imaginava, admitiu, que estivesse em um país pontuado também pelo realismo fantástico.
O surrealismo, diz Daniel de Oliveira, é parte de uma história sangrenta atualizada ainda hoje nas ruas e florestas brasileiras. "Ainda estamos fazendo a mesma coisa com os povos originários, invadindo e minerando ilegalmente. Ainda existe trabalho escravo no Brasil. Estamos cheios de problemas do passado que ainda não foram resolvidos. O Brasil é regado de sangue", sentenciava.
Para Carvalho, "é um equívoco terem trazido o coração de D. Pedro". "Ele não representa absolutamente nada, a não ser um cara ditador, despótico e machista. E o veneramos como se fosse um mito, uma entidade heroica. Alguém precisa falar sobre isso."
A minissérie falou: já no primeiro episódio, exibido para jornalistas, o espectador é levado a uma espécie de carta de intenções de um país fundado no genocídio.
É quando o príncipe recém-chegado ao Brasil D. João 6º (Antônio Fagundes) suja as mãos e se alia, em um jantar de mesa farta, aos senhores de escravos e milicianos. Após a cena da comilança, ele lê em voz alta a sua famosa carta régia em que declara guerra aos "botocudos", como eram conhecidos os povos originários que habitavam a região nordeste de Minas Gerais, e que estavam no caminho dos "preciosos terrenos auríferos abandonados hoje pelo susto que causam os índios".
"Aquela carta parece ter sido escrita hoje", diz o cineasta.
De fato: a dramaturgia se passa no século 19, mas os espíritos trazidos à tela ainda rondam por aí.
"Nesses últimos séculos vivemos a reiteração de uma perspectiva hegemônica da História. Mas que História é essa que é excludente e produziu tanta tragédia?", questiona o cineasta, que para este projeto retomou a parceria com o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, com quem já trabalhou em "Hoje é dia de Maria", "Capitu" e "A Pedra do Reino", da TV Globo.
A ideia da nova minissérie, afirma, é contar "uma outra história das independências do país" — tratadas assim, no plural.
"Não podemos aceitar um gesto único de Dom Pedro como se fosse um gesto fundamental e absoluto da Independência. Houve várias lideranças, vários heróis, vários marcos. Figuras como Maria Felipa e Frei Caneca e muitos outros a cada dia vão emergindo das profundezas de onde foram colocadas nesse apagamento."
Para fazer esse resgate, Carvalho optou por colocar no centro da história personagens que resgatam um conjunto de saberes e linguagens que coabitavam no país antes do extermínio. Parte das cenas é narrada em kimbundo, língua de matriz africana traduzida por uma legenda em português que ocupa o centro da tela, como se não houvesse chance de o espectador fugir daquele acerto de contas.
"Me parece trágico o país ter escolhido uma visão única quando ele tinha, nesse território invadido, esses saberes todos contracenando, o saber indígena, africano, europeu. Então veio essa cultura eurocêntrica de extermínio, de colonização, como acontece até hoje quando a Rússia invade a Ucrânia, com os EUA no mundo árabe", diz Carvalho.
"Essa ideia de dividir o mundo entre oprimidos e opressores é uma ideia do Iluminismo europeu do século 16. Essa ideia de que existem povos inferiores, que podem ser escravizados, que não têm saber nenhum, que não precisam da faculdade e se morrer não tem problema. O eurocentrismo criou essa dicotomia entre cabeça e corpo e colocou à margem as culturas ligadas ao corpo", completa.
Em "Independências", Carvalho quis levar à TV aberta um trabalho decolonial do começo ao fim.
Para ele, a emergência de uma classe retrógrada, fã de símbolos monarquistas, é resultado da desinformação. "Somos frutos dessa história colonialista e fomos educados nos desinformando. Nossos professores e diretores de escola estavam sentados naquele jantar (de D. João). Nossos parentes também. Aquilo é um microcosmo."
Carvalho afirma que, se fôssemos um país minimamente bem conduzido pela imensa maioria dos governantes, falaríamos hoje ao menos três línguas: o português, o tupi e o kimbundu.
"Não mudou muita coisa"
Poucas cadeiras à frente, o intérprete de Dom João, Antônio Fagundes, lamentava que daquele jantar em diante "não mudou muita coisa". "A devastação, os massacres, os morticínios. Tudo começou não foi no século 19, mas no século 16, quando os portugueses chegaram aqui."
Ao seu lado, a atriz Walderez de Barros, que dá vida a Maria 1ª de Portugal, dizia esperar que a série tire da parede o quadro de Pedro Américo em que D. Pedro é retratado como herói. Fagundes rebate: "Ou não. Vamos enxergar como aquele quadro é. Repara que o povo está ali do lado, mas só olhando".
Walderez diz se incomodar com a crítica a esse quadro vir do fato de ele ignorar a dor de barriga de D. Pedro, como se o processo de Independência tivesse nascido de uma pilhéria e apenas nos fizesse rir, 200 anos depois. "Estamos acostumados a no máximo fazer uma piada em relação à história, mas isso tudo não é cômico, é trágico", afirma ela, antes de admitir: a viagem do coração do imperador, de fato, soava como uma "piada pronta".
Perguntado se não temia mexer num vespeiro ao interpretar um monarca glutão e violento em um momento de ufanismo aflorado pelo bicentenário, Fagundes minimizou. "Não precisamos ter medo de mostrar nossas mazelas. Nossos heróis não foram esses que foram mostrados para nós. Temos que descobrir quem foram os verdadeiros heróis. A gente camufla essas mazelas, cria heróis fictícios e aí é claro que a gente não se entende como país. Não estamos apontando o dedo pra ninguém, a não ser para nós mesmos, que durante séculos olhamos a história com um olhar falseado."
Fagundes cita Bertolt Brecht para dizer que miserável é o país que precisa de heróis. "Ainda assim a gente está sempre atrás de heróis. O que precisamos é baixar a bola, entender quem somos e como lidar uns com os outros de forma suave, democrática e humana."
"A arte está aí como ferramenta para a gente questionar esses protagonismos e faltas de protagonismo que ainda existem no mundo", comenta a atriz portuguesa Isabel Zuaa, que vive a personagem Pelegrina na minissérie. "A diferença entre quem come e quem faz a comida neste mundo ainda é muito grande."
Ao seu lado, a estreante Alana Ayoká, que interpreta uma mulher escravizada, morta e transformada em entidade, lamentava que as responsabilizações sobre as heranças do Brasil Colônia estejam só agora sendo discutidas nos círculos dos chamados grupos hegemônicos —o que produzem conteúdo para a TV, por exemplo. "O racismo, a escravidão e as marcas que as ditas minorias carregam são questões dos brancos. É uma obrigação se responsabilizarem cada dia mais."
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