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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Choque de navio à deriva na ponte Rio-Niterói é metáfora perfeita do Brasil

Navio à deriva que bateu na ponte Rio-Niterói, na noite de segunda-feira (14) - Polícia Rodoviária Federal / Divulgação
Navio à deriva que bateu na ponte Rio-Niterói, na noite de segunda-feira (14) Imagem: Polícia Rodoviária Federal / Divulgação

Colunista do UOL

16/11/2022 04h00

Um dia o gigante acordou. Ancorado desde 2016 na Baía de Guanabara, o navio São Luiz, de 244 metros de comprimento, se desprendeu da corrente que o atava a uma âncora de 7,5 toneladas e passou a vagar como fantasma pelas águas do Rio de Janeiro na segunda-feira (14). A corrente não resistiu à pressão do vento.

A viagem durou pouco. No meio do caminho havia não uma pedra, mas o conjunto de blocos da ponte Rio-Niterói, maravilha arquitetônica de 72 metros de altura, erguida no auge da ditadura militar.

Na véspera do feriado da República, quem percorria o trajeto de 13,2 quilômetros que liga os dois municípios percebeu de longe a encrenca.

Em uma das filmagens, feita de dentro de um automóvel com o para-brisa a mil — como se alguém tentasse fugir de um cenário pós-apocalíptico, com o céu vermelho a anunciar uma noite de ventos e tempestades— o tranco foi flagrado com uma narração peculiar:

"O navio encalhou, mané. Vai bater na ponte Rio-Niterói, mané. Aqui o navio", diz o narrador, segundos antes de o choque fazer o aparelho voar. "Caraca, bagulho doido", continua ele, ileso.

Parecia pronto a atravessar, ao fim da ponte, os demais riscos da BR-101, em direção ao Rio Grande do Sul. Ou do Norte.

A impressão do carioca diante do choque sob a luz da Baía de Guanabara aposentava, assim, as impressões de Paul Gauguin, Cole Porter e Claude Lévi-Strauss (que viu ali uma boca banguela) cantadas por Caetano Veloso na música "O Estrangeiro".

A curta viagem do navio é ou não é a metáfora perfeita de um país igualmente à deriva?

Em 2016, quando São Luiz chegou por ali, o Brasil atracava também num ponto cinzento da história e por lá ficou. Lá dentro cabia um pouco de tudo, até resquícios de um país de escravizados.

Aquele ano foi marcado pelas Olimpíadas (realizadas a poucos quilômetros dali), por um impeachment, uma eleição municipal — que deixou o Rio sob o comando de um desafeto do Carnaval — e outros sinais de que o mundo, prestes a votar o Brexit e empoderar Donald Trump, estava mesmo de cabeça para baixo.

Sem sair do lugar, o São Luiz viu a lataria das instituições nacionais enferrujarem pouco a pouco até a âncora se soltar.

De lá pra cá, não tem navio de 63 toneladas navegando em nossa direção capaz de perturbar as pestanas de quem se acostumou a ver todo tipo de aberração.

A embarcação era parte da paisagem, como tantas outras excentricidades da antiga capital, noticiadas pela lente da normalização. Como, por exemplo, o fato de que nunca tantas armas circularam descontroladamente pelo país como agora.

O choque do São Luiz provocou a interdição na ponte, por onde trafegam diariamente cerca de 150 mil veículos. Nas três horas seguintes, o Rio registrou 33 quilômetros de congestionamento.

Como num conto de Julio Cortázar, o trânsito na autopista levou parte dos motoristas e passageiros a descer dos automóveis e procurar o que fazer. Alguns resolveram soltar pipas.

Outros foram às redes conferir os primeiros memes sobre o próprio perrengue em tempo real. Em um deles, o patriota do caminhão já aparecia colado à lataria do São Luiz. Muitos aproveitaram a comoção para reclamar e pedir providências.

O São Luiz, afinal, é uma das muitas embarcações abandonadas ao longo dos anos na Baía de Guanabara — estima-se que o número supere uma centena.

Aparentemente, o trabalho de remoção não compensa os custos para conter a deterioração. Os responsáveis pelo meio ambiente jogam a bola para a Marinha, que joga a bola para a Justiça.

Em 2018, uma reportagem do jornal O Globo mostrou que o São Luiz, embora parado, seguia tripulado. Para voltar a navegar, era preciso passar por uma reforma externa, mas a dona do navio não pagou o que devia e tudo ficou como ficou — não exatamente varrido para debaixo do tapete, mas naquele divisor de águas entre a sucata visível e a sucata submersa.

A morosidade da Justiça, a quem cabe analisar um processo judicial para destinação da embarcação, (não) se encarregou do resto.

Segundo a Marinha, nenhum habitante das águas ou das vias terrestres corria risco — até o gigante sair por aí navegando contra o vento, sem lenço e sem documento.

Em 2016, ano em que o São Luiz atracou na Baía, minha amiga Camila Kfouri, ao se espantar com a tragédia da barragem de Mariana (MG), sentenciou que o Brasil era um país que havia abolido a metáfora. O mar de lama da barragem era observado em seu sentido mais literal.

Outras forças de expressão foram igualmente soterradas em um país que nos tirou o ar durante a pandemia e desceu ladeira abaixo em inúmeros deslizamentos, a cada nova chuva.

O choque de um navio gigante à deriva com a ponte que nos une ao resto do continente é mais um capítulo de uma história de abandono trágica e literal. Se existe metáfora perfeita, estamos todos a ver navios.