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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sem cloroquina para ema: circo sai de cena e Brasil 'estranha' normalidade

Bolsonaro corre atrás de uma ema com uma caixa de cloroquina. A defesa de remédio infeficaz contra a covid-19 lhe rendeu acusações de charlatanismo - REUTERS/Adriano Machado
Bolsonaro corre atrás de uma ema com uma caixa de cloroquina. A defesa de remédio infeficaz contra a covid-19 lhe rendeu acusações de charlatanismo Imagem: REUTERS/Adriano Machado

Colunista do UOL

08/01/2023 04h01

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Em 8 de setembro de 2021, uma quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do chamado marco temporal, projeto encampado por Jair Bolsonaro (PL) que impedia povos indígenas de reivindicarem a demarcação de terras ocupadas após a promulgação da Constituição de 1988. Não havia nada mais importante do que aquele debate naquele dia no Brasil, mas no Brasil só se falava de outra coisa.

Isso porque, ao longo daquele dia, ainda repercutiam as declarações incendiárias do então presidente feitas na véspera, em manifestações a apoiadores em Brasília e São Paulo, no feriado de 7 de Setembro.

Na ocasião, ele avisou que deixaria o poder preso, morto, com vitória ou sob intervenção divina. Ele dobrou a aposta no sistema impresso de votação, colocada como condição inegociável para aceitar o resultado das eleições do ano seguinte, e disse que a "paciência do nosso povo já se esgotou".

Ele chamou o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes de "canalha" e disse que ele havia perdido as "condições de continuar dentro daquele tribunal".

"Não queremos ruptura, não queremos brigar com Poder algum, mas não podemos admitir que uma pessoa coloque em risco a nossa liberdade", discursou, quase babando de raiva, para delírio da plateia.

A bomba retórica deixou um país inteiro atônito. Aquela era ou não uma ameaça de golpe? Bolsonaro deixaria mesmo de cumprir decisão judicial? O que aconteceria dali em diante? Uma guerra?

Não teve brasileiro, de jurista a jogador de bocha, que não passou os dias seguintes debatendo a ameaça de deflagração de uma crise cozinhada em fogo brando, mas que nunca passou disso: uma ameaça.

No ano seguinte, um pouco mais amansado, Bolsonaro não se desnudou, de todo, do figurino golpista, mas o assunto principal no Brasil era a sua suposta virilidade, ovacionada em coro de "imbrochável" por uma plateia em delírio. A notícia, naqueles dias, era o passeio do coração de Dom Pedro 1º pelo Brasil.

Mas Bolsonaro monopolizou o noticiário colocando o próprio pênis no discurso do bicentenário da Independência.

Nas prateleiras hierárquicas da economia de atenção, os desmandos para rasgar as normas fiscais e eleitorais para se reeleger no muque viravam notas de rodapé diante da transformação paulatina do Brasil na Macondo de Gabriel García Márquez.

Sob Bolsonaro, a má notícia não era dada nem de uma vez nem a conta gotas, como assinalaria Maquiavel; era simplesmente ofuscada por alguma cena circense que logo virava a atração principal.

Como quando, em vez de repercutir o PIB raquítico de seu primeiro ano de mandato, Bolsonaro mudou de assunto ao escalar um humorista vestido de Bolsonaro para falar com os jornalistas. Dos números mesmo quase ninguém se lembra, nem dos esforços criativos de quem acabava de inventar uma divisória inexistente entre PIB público e PIB privado.

Aos poucos, um esquete antológico do coletivo Porta dos Fundos, em que a preocupação dos assessores presidenciais era "escrotizar" o cenário de um pronunciamento para obter engajamento, o fim e não o meio daquela turma, deixou o campo da ficção e se converteu em realidade.

Os brasileiros deixavam de discutir a gravidade da pandemia cada vez que o presidente saía do palácio oferecendo cloroquina para ema, mandando eleitor "idiota" comprar vacina na casa da mãe, pedia aos eleitores para fazer cocô dia sim, dia não, gastava dinheiro e atenção em motociatas e passeios de jet ski, vestia camisas fake ou falava sobre jacarés.

A inanição do governo diante dos desafios de seu tempo era sempre um detalhe diante de bobagens produzidas em escala industrial. Como quando ofendia a primeira-dama francesa, "denunciava" que o Brasil tinha virado "paraíso gay" e que nossas florestas, uma "virgem que todo tarado de fora quer".

Quando não era o presidente era seu filho que vinha a público anunciar o desejo de resgatar o AI-5. Ou para brigar com o embaixador chinês e levar o país à beira de uma crise diplomática com seu maior parceiro comercial.

Quando não era o filho do presidente era seu ministro da Economia que furava teto de gastos e passava despercebido falando absurdos sobre porteiros, empregadas e o prato-feito da classe média.

Ou o ministro da Educação que prometia dar porrada em juiz. Ou dizendo que universidade boa era universidade para poucos e que castigo físico em criança era corretivo, não violência. Ou mentindo sobre o próprio currículo.

Ou ministra inventando histórias sobre "massagem sexual em crianças", remoção de dentes para sexo oral e hotéis-fazenda de fachada para turistas se regozijarem com animais.

A produção de fumaças era método e a impressão era que, nesta cruzada espiritual pintada com a mesma estética dos quadros de seus apoiadores, o Brasil passou quatro anos sem problemas relacionados à Previdência, relações de trabalho, (in)definição da política econômica, corte de gastos, isenções tributárias — temas que voltaram a ganhar destaque na última semana, desde a data da posse.

Sem um Napoleão de Hospício servindo como para-raio das atenções, muita gente pensa que só agora a Bolsa começou a reagir diante das falas e sinalizações do novo presidente e seus ministros.

É que tanto as razões para as oscilações quanto as oscilações em si do mercado já não têm aquela névoa para encobrir o foco dos assuntos que realmente interessam.

Por isso os conflitos tendem, a partir de agora, a serem vistos, diagnosticados, enfrentados e criticados de maneira mais clara.

O risco é a política, sem a alta voltagem das brigas e intrigas produzidas pelo governo anterior, virar, novamente, um assunto chato.

Bolsonaro deixou parte do país adicto em confusão.

A ponto de ter gente estranhando que a nova ministra do Meio Ambiente não ataque o meio ambiente. Ou que o ministro da Educação não pense que universidade é lugar de balbúrdia.

São os custos, com os tropeços e os conflitos inevitáveis, do que os povos antigos costumavam chamar de normalidade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL