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Opinião: Bolsonaro recusa o debate político para se arremessar na mitologia

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André Azevedo da Fonseca

Colaboração para o TAB

12/03/2019 04h00

Na segunda-feira (11) o presidente da República Jair Bolsonaro emitiu uma série de declarações no Twitter conclamando as próximas gerações a levar adiante a "sementinha" que muitos haviam plantado para impedir "o mal que esteve tão perto de destruir nosso país". Colocando-se como uma espécie de salvador disposto a "quebrar o ciclo da massa hipnotizada", o presidente passou a fabular uma verdadeira guerra santa contra forças literalmente demoníacas. "Defeitos, todos temos, mas a maldade formada para destruir é nata e organizada apenas por um lado." O ponto de partida foi a recorrente alegação olavista de que o ambiente acadêmico vem sendo "massacrado pela ideologia de esquerda."

Como sempre, essas declarações provocaram milhares de trocas de ofensas entre seguidores e adversários nas redes sociais. Mas o ponto que eu gostaria de abordar não diz respeito ao conteúdo da mensagem, mas à sua forma: ao manipular uma linguagem carregada daquela simbologia maniqueísta, Bolsonaro dá as costas ao debate político para arremessar a imaginação social no abismo da mitologia.

Tempos de crises generalizadas, tal como vemos atualmente, oferecem um campo fértil para o florescimento de mitologias políticas. Fala-se muito do indivíduo pós-moderno, que seria capaz de deslocar suas identidades culturais no mundo globalizado, etc. Mas, na prática, as coletividades não suportam períodos de perplexidade. Quando os desafios reais ou imaginários de um povo parecem confusos ao ponto de se tornarem incompreensíveis, a imaginação social se encarrega de entrelaçar narrativas já presentes na cultura para encobrir essa incerteza com histórias inteligíveis.

Uma narrativa simples e coerente, mesmo que apenas imaginada, sempre parece mais verdadeira do que aquelas análises abstratas repletas de ambiguidades, senões e variáveis complexas. A qualidade e mesmo a veracidade dos fatos é irrelevante se a fabulação indicar um sistema descomplicado de causas e efeitos e criar uma sensação de que a realidade tem sentido. As pessoas preferem a verossimilhança à verdade. Como lembra muito bem Yuval Harari, humanidade é um produto de animais que aprenderam a contar histórias. O nosso próprio pensamento ocorre através de narrativas. Até para explicar o universo supomos que devemos "contar uma história".

Do mesmo modo, no campo da política, as narrativas mais poderosas são aquelas mesmas que perduram há milênios nas estruturas dos mitos, das fábulas e das religiões: o herói em luta contra o mal, o profeta que livra o seu povo da escravidão e conduz os justos à terra prometida... Sem perceber, enquadramos a realidade nessas estruturas de interpretação.

Mitos projetam dinâmicas verdadeiras de nosso inconsciente. Nossos pavores infantis mais profundos, assim como os nossos desejos mais inconfessáveis, são a matéria-prima dessas histórias. Nosso inconsciente fala através dos mitos. Por isso, mitos políticos estão presentes, em graus variáveis, em todos os momentos históricos. Essas mitologias não são forjadas apenas em sociedades arcaicas. De reinados populares a despotismos, de regimes ditatoriais a sociedades democráticas, todos os governantes procuram lançar mão desses recursos para causar impactos na imaginação social.

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Imagem: Arte/TAB

No Brasil de meados do século 19, por exemplo, a mitificação do imperador era realizada, entre tantos recursos, por meio dos cerimoniais pomposos, do vestuário majestoso, do luxo dos palácios e das pinturas magníficas que buscavam representá-lo com uma aura gloriosa. No final do século, na aurora do período republicano, os ideólogos preocupados em legitimar o regime se empenharam para investigar na cultura brasileira aquelas figuras que poderiam ser mitificadas em nome dos novos tempos. A narrativa que transformou Tiradentes em mártir foi recuperada e celebrada neste contexto. A imprensa foi fundamental na difusão destes símbolos.

Mais tarde, no Estado Novo, Getúlio Vargas manipulou o imaginário de seu tempo com muita consciência. Ele empregou amplamente o rádio e o cinema nos esforços para atribuir a si mesmo uma mitologia tão poderosa que ainda hoje perdura na imaginação social. A ditadura militar de 1964 também foi pródiga em mitologias. Através do controle da imprensa e da televisão, além dos inumeráveis rituais cívicos, os governantes buscavam alimentar o mito da unidade nacional, ocultando as contradições sociais através da devoção aos símbolos da pátria. Por seu turno, os movimentos de oposição, incluindo a luta armada, fabularam todo um imaginário heroico para legitimar as suas causas.

Na redemocratização, apesar do martírio de Tancredo Neves, foi Collor quem mais tarde se apresentaria como um herói moderno capaz de conduzir o Brasil à terra prometida da globalização. Mais tarde, o próprio Lula, a seu modo, também foi representado como um herói que venceu os desafios da vida até se tornar um novo pai da nação. Além das mobilizações políticas clássicas, a internet, por meio de blogs e sites independentes, foi um campo importante de disputas de sentido naquele período. E enfim, na era das redes sociais e do WhatsApp, um herói improvável foi construído para combater um conjunto de teorias da conspiração anacrônicas que há anos eram disseminadas sem qualquer controle nessas plataformas. Estamos em pleno processo de fabulação de toda uma cosmologia.

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O herói salvador

A mitologia do herói salvador é uma das narrativas mais populares porque é facilmente identificável. A luta do bem contra o mal é o tema central das grandes religiões da humanidade. Esse esquema de pensamento está profundamente enraizado em nossa imaginação. Se uma sociedade em crise é levada a personificar os seus problemas complexos em um bode expiatório, aquele que se apresenta como antagonista é automaticamente alçado ao status de salvador. E naturalmente, quanto mais ameaçador o inimigo, mais urgente se faz o herói. Ou seja, o valor do guerreiro depende diretamente da perversidade atribuída ao vilão. Por isso, macular os antagonistas políticos com representações de maldade extrema é uma forma disfarçada de atribuir a si mesmo virtudes inversamente proporcionais.

No discurso de Bolsonaro, Haddad participava de uma organização criminosa que distribuía kits gays nas escolas e atuava para doutrinar as crianças para o comunismo. O próprio Sérgio Moro, voluntariamente ou não, é frequentemente representado como uma espécie de herói nacional em luta contra Lula e o PT. Há incontáveis memes de admiradores e partidários que os representam como super-heróis que salvam o país do "comunismo". Não deixa de ser sintomático o fato de Bolsonaro também ter convidado um astronauta para o ministério da Ciência e Tecnologia - outro representante do panteão de heróis nacionais a serem cultuados, ao lado dos generais.

Muitos fatores explicam o fato de Bolsonaro ser chamado de "mito" por seus seguidores. O primeiro é o mais corriqueiro: na gíria de Internet, "mito" é um termo equivalente ao conceito de "lacrador". Quando alguém realiza uma ação ou profere um discurso considerado inusitado, extraordinário ou exemplar, os seguidores dizem que o ídolo "mitou". Bolsonaro se popularizou precisamente devido às suas bravatas preconceituosas contra gays, movimentos sociais, feministas e direitos humanos. Para os bolsonaristas, o seu herói se torna um mito quando "humilha" feministas, ativistas LGBT e militantes de esquerda em geral.

Mas em uma camada mais profunda, a metáfora obsessiva não deixa de revelar uma veneração que ultrapassa a mera afinidade ideológica. Nesse sentido, seguidores o enxergam como um representante legítimo de certos valores e determinada moral. Assim, mais do que um representante político, Bolsonaro se torna um modelo de conduta. Se os heróis das fábulas assumiam também o papel pedagógico de inspirar ações virtuosas, o reconhecimento de que Bolsonaro alcançou o status de mito parece legitimar essa característica.

A facada que o atingiu durante a campanha trouxe um elemento inesperado à sua mitologia: o martírio. A partir de então, o candidato foi representado como aquele que, literalmente, entregava o seu sangue em sacrifício pelo país. Os gráficos das pesquisas demonstraram que este evento foi determinante para a sua eleição. Ainda que seja necessário analisar em que medida esse imaginário influenciou as eleições, a infinidade de memes que o representam como um herói indicam essa disposição dos partidários em atribuir características desta natureza ao seu ídolo.

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As faces do mito

Mitos são polissêmicos por definição. Isso significa que o mesmo mito pode ser interpretado de forma inversa, de acordo com os interesses do intérprete. As mensagens dos mitos não são fechadas: ao contrário, são maleáveis, flexíveis e se transformam com o tempo. Prometeu, por exemplo, pode ser visto como um alerta sobre os perigos da arrogância humana diante as forças divinas que regem a natureza; ou, ao contrário, como uma inspiração de rebeldia para aqueles que confiam na superação humana através da inteligência do progresso científico. Mitos são ricos precisamente devido à possibilidade de múltiplas traduções. Ora, basta verificar como o próprio Jesus Cristo é igualmente convocado para defender pautas políticas antagônicas. Quanta bondade e quanta violência foi perpetrada em seu nome! Isso acontece porque cada sociedade extrai do mito as mensagens que lhe convém, invertendo os polos de bem e de mal de acordo com seus interesses econômicos ou ideológicos.

Naturalmente, é preciso ficar claro que a perspectiva das mitologias políticas não explica tudo. Para compreender a conjuntura que levou Bolsonaro à presidência é preciso avaliar um conjunto de fatores históricos, sociais, culturais e políticos. Historiadores precisam de tempo para avaliar toda essa dinâmica. Até porque a história está em processo e jamais podemos supor que é possível prever as consequências futuras das dinâmicas políticas do presente. Mas a perspectiva das mitologias políticas, tal como demonstro nessa série de vídeos no meu canal no YouTube, contribui para compreendermos os discursos que têm sido fabulados para sustentar as paixões e ódios do bolsonarismo.

Como vimos, tempos de crise são férteis para mitologias. Talvez por isso Bolsonaro tenha que provocar crises permanentes para manter aceso o mito. Mas a história demonstra que os riscos de médio e longo prazo deste tipo de combustão não compensam os benefícios de curto prazo. É um equívoco criar expectativas históricas a partir da fantasia de salvação que as religiões e as mitologias prometem. Assim que os fiéis notarem que as fabulações do líder não têm condições de serem cumpridas na vida real, o polo tende a se inverter, de modo que a máscara do herói, derretida e deformada, passa a ser amaldiçoada pelos próprios adoradores. A ver.

André Azevedo da Fonseca é professor e pesquisador no Centro de Educação, Comunicação e Artes (CECA) na Universidade Estadual de Londrina. Autor de "A construção do mito Mário Palmério" (Ed. Unesp, 2012)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL