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Cientista brasileiro é responsável pelo 'cofre do fim do mundo'

O biólogo Alexandre Antonelli, diretor científico do Kew Gardens, no Reino Unido - Mark Winwood/Divulgação
O biólogo Alexandre Antonelli, diretor científico do Kew Gardens, no Reino Unido Imagem: Mark Winwood/Divulgação

Luiza Sahd

Colaboração para o TAB, de Londres

21/11/2019 04h00

Em fevereiro de 2019, o maior jardim botânico do mundo ganhou um novo diretor científico — e ele é brasileiro. Graduado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Alexandre Antonelli terminou seus estudos na Suécia e passou sete meses como professor visitante na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Depois, foi diretor do Centro de Biodiversidade Global de Gotemburgo, também na Suécia. Agora, ele está na liderança da área científica do tradicionalíssimo Kew Gardens, em Londres (Reino Unido).

Antonelli é responsável por todos os programas de educação e pesquisa conduzidos na instituição, que conta com 500 pessoas na área de ciência, trabalhando com mais de 100 países do mundo e cerca de 400 organizações. Além disso, o brasileiro também zela por um tipo de "Arca de Noé" moderna: a inestimável coleção de espécies do jardim botânico inglês, que inclui 8,5 milhões de itens entre plantas e fungos.

O biólogo Alexandre Antonelli nos Andes colombianos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O biólogo Alexandre Antonelli nos Andes colombianos
Imagem: Arquivo Pessoal

A caminho do aeroporto para uma expedição a Madagascar, o biólogo conversou com o TAB sobre a importância de projetos como o banco de sementes do Kew, que guarda cópias de plantas raras e é a mais importante coleção botânica e de fungos do mundo todo. No momento, o maior desafio de Antonelli é uma luta agridoce em defesa da ciência e em busca de recursos e parcerias para manter a coleção botânica atualizada enquanto os casos de extinção abundam mundo afora.

Como funciona um banco de sementes

Conhecidos como "cofres do fim do mundo", grandes bancos de sementes também estão presentes em países como Estados Unidos e Noruega. Em todos eles, a ideia é manter cópias de espécies botânicas raras fora de seus locais de origem. Se necessário, as sementes podem ser reinseridas em biomas prejudicados por fatores climáticos, de urbanização desordenada ou de exploração agropecuária, as causas mais frequentes de extinção de espécies botânicas nas últimas décadas.

No banco de Kew, as sementes recebem um tratamento especial: são desidratadas e congeladas a temperaturas que giram em torno de -20°C. Algumas espécies precisam ser mantidas em nitrogênio líquido, a -196,15°C, como personagens de filmes de ficção científica. As tecnologias envolvidas para manter as sementes vivas são variadas — e testes de germinação fazem parte da rotina do jardim botânico. A cada 5 ou 10 anos, os pesquisadores retiram algumas sementes de cada coleção e conferem se estão germinando, além de observar se elas apresentam qualquer problema de desenvolvimento.

"O foco do nosso banco é manter essa garantia para o futuro, mas as sementes hoje também são utilizadas em vários projetos de pesquisa que investigam a variabilidade genética dentro de espécies e quais são os requerimentos para que essas sementes continuem viáveis no futuro", explica Antonelli. Ele conta que os exemplares são congelados por meio de energia elétrica, mas garante que a instituição também se preocupa com eventuais acidentes e, portanto, conta com um gerador que pode manter a coleção resfriada em caso de queda de energia.

Cientista manipula potes no banco de sementes do Kew Gardens, no Reino Unido - Andrew McRobb/Divulgação - Andrew McRobb/Divulgação
Cientista manipula potes no banco de sementes do Kew Gardens, no Reino Unido
Imagem: Andrew McRobb/Divulgação

A localização ao sul de Londres não foi uma escolha ao acaso: ficar longe do rio Tâmisa também foi uma medida preventiva contra acidentes em caso de enchente. Como estratégia de backup, o trabalho no banco é também criar redundância — trocando cópias de exemplares nativos com outros bancos de sementes em diferentes localizações.

A ciência ganha (muito) com isso

Para além da preservação da biodiversidade no mundo, uma das grandes vantagens de projetos como o banco de sementes do Kew é o estímulo para que países doadores de exemplares nativos também criem seus próprios backups locais, como explica Antonelli. "Trabalhamos com muitos países para que eles possam reproduzir nossas técnicas, oferecendo cursos e workshops sobre como cada região pode construir o seu próprio banco de sementes. Diversos países parceiros começaram a ter mais iniciativas nesse sentido após colaborar conosco", afirma.

Segundo Antonelli, o projeto tem recebido uma ótima crítica mundial, mesmo não sendo uma ideia tão nova. "Os bancos de semente têm uma história bem antiga, mas nunca contaram com tantas ferramentas científicas, como a opção de radiografar sementes para investigar se há mesmo embrião dentro de cada uma delas. Os bancos mais tradicionais do mundo não congelavam as sementes até pouco tempo. Agora, estamos avançando na metodologia para conservá-las melhor", comemora.

Maiores desafios

Antonelli explica que um desafio constante em seu trabalho com o banco de sementes ainda é a obtenção de investimentos. "Foi relativamente fácil conseguir financiamento para o estabelecimento inicial do banco de sementes, porque na primeira fase de seleção coletamos espécies mais acessíveis. Agora, é cada vez mais difícil acrescentar espécies que estejam em áreas remotas ou espécies com poucos exemplares. Não queremos fazer intervenções que prejudiquem nenhuma espécie e, por isso, o protocolo é coletar pequenas quantidades das sementes", conta.

O cientista revela que a coordenação internacional para a manutenção do banco de sementes nem sempre é simples: existem entraves legislativos no acesso a materiais biológicos e nas transferências de exemplares entre países. "Muitas autorizações são necessárias para tocar esse trabalho, respeitando as normas da Convenção Sobre Diversidade Biológica (CDB) e outras questões de legislação internacional e nacional."

Coleção de sementes nativas, dedicada a David Attenboroug, no Kew Gardens - Andrew McRobb/Divulgação - Andrew McRobb/Divulgação
Coleção de sementes nativas, dedicada a David Attenboroug, no Kew Gardens
Imagem: Andrew McRobb/Divulgação

Questionado sobre seus objetivos a médio e longo prazos no jardim botânico mais relevante do mundo, Antonelli não é modesto — e nem deveria ser, depois de chegar tão longe. "Quero aumentar o impacto da ciência e da educação em benefício da humanidade e da natureza. Idealmente, gostaria de promover um impacto real no entendimento e proteção da biodiversidade no mundo todo", conclui. O cientista lembra que pesquisas como as que são conduzidas no Kew podem contribuir efetivamente para solucionar alguns dos maiores desafios da humanidade, como a perda da biodiversidade, a precariedade alimentar, a biossegurança, os efeitos das mudanças climáticas no planeta e nas populações.

"Acredito realmente que plantas e fungos provêm muitas soluções que ainda não foram exploradas. Mais da metade de todos os remédios que consumimos hoje vieram originalmente de plantas. Tudo o que comemos, vestimos ou as fibras que usamos como materiais de construção são produtos naturais. Por isso, confiamos que existe uma grande possibilidade de retomar essa exploração que começou há centenas de anos atrás, mas agora usando novas técnicas", diz Antonelli.

Como fazemos nossa parte?

A questão ambiental vem ganhando cada vez mais espaço no debate público. Movimentos como o Extinction Rebellion — que também atua majoritariamente no Reino Unido — têm reivindicado a urgência das discussões sobre a situação climática de forma mais contundente entre a sociedade civil, as organizações e os Estados.

Na opinião de Antonelli, os avanços nesse debate só serão viáveis caso os cidadãos sejam ouvidos e a comunidade científica internacional receba mais acolhimento. "O planeta está mudando muito rapidamente, como nunca vimos em mais 300 mil anos como espécie. Os desafios que enfrentamos agora requerem uma mudança dramática na sociedade e isso não é tarefa de uma pessoa ou de uma instituição, mas de todo mundo."

Para o cientista, o desenvolvimento sustentável depende de mudanças a nível individual -- na forma como nos alimentamos, como climatizamos nossas casas, nos produtos que compramos para impedir a degradação do planeta -- e a nível coletivo, empresarial e governamental. Ele ressalta que as empresas também têm um papel muito importante quando negociam produtos, escolhem seus métodos de cultivo e suas matérias-primas. A nível governamental, Antonelli ressalta a importância da determinação de incentivos fiscais e benefícios para empresas que se preocupam com o meio ambiente. "Todos os segmentos da sociedade têm de estar envolvidos nessa transformação", conclui.

Ciência com fronteiras

O biólogo lembra que os desafios identificados pelas Nações Unidas como metas de desenvolvimento sustentável são grandes e demandam, além da transformação de mentalidade coletiva, novas soluções científicas. "É aí que entra o papel dos pesquisadores, porque a ciência não tem preconceito. Ela não tem uma agenda para tentar convencer as pessoas a nada. A gente tem que confiar nas evidências e no conhecimento que a ciência oferece sobre os fatos e suas consequências, caso tomemos medidas diferentes das recomendadas pela ONU", defende Antonelli, que diz acreditar no potencial de governos e empresas para fazer as decisões mais alinhadas ao conhecimento e às evidências científicas e menos baseadas em opinião.

O Kew mantém projetos de colaboração com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) no banco de sementes, inclusive porque centenas de pesquisadores brasileiros já passaram pela instituição inglesa em alguma etapa de sua formação acadêmica. De 2018 para cá, entretanto, o fim do programa Ciência sem Fronteiras parece ter afetado a colaboração de brasileiros no Kew. "Com tantos cortes de verbas para a pesquisa, temos visto que muitos dos nossos colaboradores brasileiros foram afetados. Justamente quando assumi a diretoria aqui, ficou mais difícil discutir novas iniciativas, sabendo que alguns projetos já em andamento têm sido afetados pelos cortes", lamenta o pesquisador.

Tem jeito? Para Antonelli, sim. "Gostaria muito que o Brasil entendesse a importância do papel dele no cenário internacional e trabalhasse com outros países e organizações internacionais como o Kew para encontrar soluções que sejam mutuamente benéficas — tanto para o desenvolvimento social e econômico brasileiro quanto para a preservação da natureza e da biodiversidade do planeta. Sou muito otimista em termos de encontrar soluções, mas isso depende de um entendimento mútuo das necessidades e perspectivas brasileiras. Espero que o governo dê a devida atenção à Amazônia, por exemplo, que é um bioma de importância mundial e a todo custo deveria ser preservado. O país precisa repensar essa proteção."