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Por que manifestações contra o STF e o Congresso ameaçam a Constituição

O ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o presidente Jair Bolsonaro, em transmissão pelo Facebook - Reprodução/Facebook (12.03.2020)
O ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o presidente Jair Bolsonaro, em transmissão pelo Facebook Imagem: Reprodução/Facebook (12.03.2020)

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bred (Eslovênia)

15/03/2020 04h00

Vivemos em um Estado democrático. Cada um tem direito de pensar (e se expressar) da maneira que quiser. Cada pessoa tem direito de apoiar ou criticar esse ou aquele político, conforme bem entender. Há quem queira fazer uso desse direito em meio à pandemia de coronavírus, desafiando as recomendações do Ministério da Saúde e mantendo as manifestações contra o Congresso e o Supremo marcadas para este domingo (15 de março). Os protestos foram incentivados ao longo dos últimos dias pelo próprio presidente, Jair Bolsonaro (sem partido) — que foi e voltou algumas vezes —, por lideranças de direita e pelo ideólogo Olavo de Carvalho. O povo fez até hashtag: #desculpajairmaseuvou.

Para além do que veremos nas ruas, por que tais mobilizações ferem o Estado de Direito? A Constituição Federal determina: "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário". "A separação dos poderes conforma a natureza republicana do Estado brasileiro, cujo conteúdo se define pelos sistemas de equilíbrios, pesos e contrapesos que os poderes mantêm entre si", explicou ao TAB o cientista político Aldo Fornazieri, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política. "Significa que cada poder tem funções específicas que são equilibradas e contrapesadas pelos poderes dos outros." Aí está o problema nas manifestações previstas.

Pode, Arnaldo? Não. Não é legítimo protestar contra um poder. É legítimo protestar contra o (ou os) ocupante(s) do poder. E o cenário é ainda mais complicado quando alguém que ocupa um desses poderes insufla seus apoiadores a endossar tal manifestação. Tais comportamentos atentariam para o funcionamento da democracia, conforme escreveu o cientista político Jairo Nicolau, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), no prefácio da edição brasileira do livro "Como as Democracias Morrem". "As duas regras informais decisivas para o funcionamento de uma democracia seriam a tolerância mútua e a reserva institucional. Tolerância mútua é reconhecer que os rivais, caso joguem pelas regras institucionais, têm o mesmo direito de existir, competir pelo poder e governar. A reserva institucional significa evitar as ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito. Portanto, para além do texto da Constituição, uma democracia necessitaria de líderes que conheçam e respeitem as regras informais", apontou ele. Crises constitucionais não são novidade na política latino-americana -- mas os desdobramentos sempre acabam mal. Em 1992, o então presidente peruano Alberto Fujimori dissolveu o Congresso, interveio no Judiciário e assumiu o controle de vários meios de comunicação. Mas a postura do presidente Jair Bolsonaro se assemelha mais a do ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, também de origem militar, apesar de estarem ambos localizados em espectros ideológicos opostos.

Cada um, cada um. Fornazieri explica que, no Constitucionalismo moderno, principalmente nos modelos derivados dos fundamentos da Constituição norte-americana, como é o caso do Brasil, "existe um entrelaçamento indissolúvel entre a natureza republicana do Estado -- a separação dos poderes -- com sua natureza democrática -- a emanação popular do poder e a participação política do povo". "Todo poder concentrado num dos ramos fere essas duas naturezas, porque ele irá cometer abusos", afirma o cientista político. "Se o equilíbrio for rompido, um poder passa a ter prerrogativas a mais, cometerá abusos e estará livre dos controles e de possíveis punições das autoridades que cometem abusos." Em outras palavras, é justamente a divisão entre os Poderes -- e o fato de um poder regular o outro -- o que garante a limitação dos próprios.

Equilibrar para não cair. "Protestar contra políticos é legítimo; propugnar o fechamento de poderes constituídos, que estabelecem freios e contrapesos, é crime contra a Constituição do país", diz ao TAB o cientista político Carlos Melo, professor do Insper. "A diferença é brutal. E pior que isso tenha ainda o incentivo de autoridades que juraram defender a Constituição, como é o caso do presidente da República." Ir para as ruas e engrossar esse coro, portanto, significa apoiar o surgimento de uma ditadura. "No meu entender, um protesto com essa natureza não é legítimo porque atenta contra a ordem democrática e republicana da organização do Estado Brasileiro", salienta Fornazieri.

Mas como responsabilizar? O cientista político acredita que faltam mecanismos, no Brasil, de defesa do Estado Democrático de Direito, uma lei para punir conspirações e tentativas de golpes de Estado de forma severa. "Há alguns mecanismos aqui e ali, mas são insuficientes", ressalta ele. "Tem-se uma legislação contra o terrorismo, uma lei de segurança nacional e não se tem uma lei de defesa do Estado Democrático de Direito. É uma falha gravíssima dos partidos e parlamentares que se dizem defensores da democracia."

Entender para não pagar o pato. Por isso, entre o like no post da convocação e o cartaz empunhado na avenida, é preciso entender o que significam essas manifestações. Até para não ser feito de boneco de ventríloquo, massa de manobra na mão de outros interesses e interessados. "Fazer discursos, textos, passeatas e manifestações contra a ciência, a democracia, as instituições do Estado de Direito e os direitos humanos é uma estupidez que pode causar problemas: pessoas influenciáveis podem se convencer a abandonar tratamentos médicos, trocando ciência por crendices; a abandonar a democracia e as instituições, elegendo candidatos autoritários, botando fogo no Supremo Tribunal Federal, dando tiros em senadores; ou a discriminar os outros, atacando gays na rua, humilhando negros, etc.", explica ao TAB o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-Direito, em São Paulo.

E onde fica a liberdade de expressão? Ele lembra que o direito das pessoas em aderir a tais manifestações é algo que não pode ser tolhido. "Esses efeitos negativos potenciais, embora muito perigosos ou mesmo destrutivos, são insuficientes para justificar a limitação às liberdades de expressão, de crença, de reunião e de manifestação, garantidas pela Constituição", ressalta ele. "Todas as pessoas têm pleno direito não só à sua estupidez, mas também à pregação pública da estupidez, inclusive em favor da mudança das normas constitucionais e legais. O limite é o da pregação pacífica, isto é, a violência física é reprimida e punida."

É pra gente se preocupar? O cientista político Steven Levitsky, professor da Universidade de Harvard e um dos autores de "Como As Democracias Morrem", disse ao TAB que "em geral, os protestos de cidadãos precisam ser protegidos e, portanto tratados como legítimos. Se você der ao governo o poder de definir um protesto como ilegítimo, o direito de protestar estará em perigo. É preferível errar e permitir até mesmo protestos antissistema -- desde que não causem danos às pessoas ou sérios danos à propriedade."
Mas quando o chefe do Executivo demonstra animosidade contra outro ou outros poderes legitimamente constituídos, a democracia está em risco. "O presidente da República pode muito, mas jamais poderá tudo justamente porque na democracia há mecanismos previstos para contê-lo, de modo a impedir que se transforme num tirano", afirma Melo. E este contexto se torna mais grave se há apoio popular -- a rede bolsonarista no WhatsApp demonstra animação com esse conflito de vozes. O livro "Como As Democracias Morrem" trata sobre os sinais que despertam preocupação na conduta de figuras políticas. "Nós devemos nos preocupar quando políticos: 1) rejeitam, em palavras ou ações as regras democráticas do jogo; 2) negam a legitimidade de oponentes; 3) toleram e encorajam a violência; e 4) dão indicações de disposição para restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia", explicam. A obra foi publicada no início de 2018, mas muitas de suas linhas cabem ao Brasil de 2020.