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No Egito, lésbica brasileira passa por 'amiga-irmã' da noiva muçulmana

Adriana preferiu omitir a identidade, para preservar a noiva - Paulo Sampaio/UOL
Adriana preferiu omitir a identidade, para preservar a noiva Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Paulo Sampaio

Do TAB

29/10/2020 04h01

A primeira viagem internacional da empresária brasileira Adriana C.*, 32, foi para o Egito. "Argentina não conta", diz ela à reportagem, rindo. A Covid-19 ainda não havia tomado a dimensão de pandemia, no fim de janeiro, quando ela saiu de sua casa, no interior de São Paulo, e embarcou em um voo para o Cairo, a fim de conhecer o país e a família da noiva muçulmana.

A intenção era passar um mês, mas então a quarentena decretada em quase todo o mundo a obrigou a mudar de planos. Presa quando as fronteiras do país foram fechadas para chegada e partida de voos, sua estada se prolongou por seis meses.

Ela não achou ruim. Conta que a família da professora Mariam*, com quem iniciou um relacionamento on-line em 2014, a acolheu muito calorosamente. É verdade que os três irmãos, o pai e a mãe da professora acham que as duas são apenas muito amigas. "Amigas-irmãs", define Adriana. "Foi a primeira vez que eu entrei no armário."

Irmão gay, filho trans

Cinco anos mais nova, Mariam já veio a São Paulo algumas vezes — pelo menos uma por ano — desde que as duas engataram namoro. Na primeira, ela disse à família que queria conhecer o Brasil. Adriana conversou com o pai da moça, para tranquilizá-lo. "O Brasil, para eles, é Carnaval e futebol. A tia dela perguntou se aqui as mulheres andavam nuas."

No ambiente em que Adriana circula, a muçulmana pode não só esquecer a personagem que é obrigada a interpretar como falar abertamente de sua orientação sexual, já que sua futura sogra trabalha na ONG "Mães pela Diversidade", uma rede de apoio a jovens LGBTQI+. Além da filha lésbica, Dora* tem um filho heterossexual, um gay e uma neta trans. A menina, de 7 anos, é filha de Adriana. "Eu tenho todas as letras da sigla na família", diz Dora.

Pergunto à Adriana se ela é uma lésbica ocasional. Achando a pergunta estranha, ela diz que tampouco é bissexual. O termo correto é lésbica não-binária (que não resume os gêneros a masculino e feminino). Afirma que a filha, que pediu para adotar um nome feminino aos 5 anos, nasceu de um relacionamento heterossexual surgido em um "período conturbado" de sua vida.

Filha de uma colaboradora da ONG "Mães pela Diversidade", de apoio a jovens LGBTQI+, Adriana tem um irmão gay e uma filha trans - Paulo Sampaio/UOL - Paulo Sampaio/UOL
Filha de uma colaboradora da ONG "Mães pela Diversidade", de apoio a jovens LGBTQI+, Adriana tem um irmão gay e uma filha trans
Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Web série lésbica

A história real de Adriana e Mariam começou a partir de uma ficção. As duas foram atraídas pela web série lésbica canadense "Carmilla", exibida a partir de 2014 pelo canal do YouTube Vervegirl.

O enredo se baseia na novela gótica de mesmo nome escrita em 1872 pelo irlandês (Joseph) Sheridan Le Fanuem. No original, a vampira que dá nome à obra seduz uma garotinha órfã de mãe que vive em um castelo com o pai militar e duas governantas. Considerado um clássico, atribui-se à Carmilla a inspiração de Bram Stoker para criar "Drácula", o romance de horror gótico mais lido no mundo.

Natasha Negovanlis, amarrada, e Elise Bauman, ao lado, interpretaram os papeis principais em "Carmilla" - Reprodução - Reprodução
Natasha Negovanlis, amarrada, e Elise Bauman, ao lado, interpretaram os papeis principais em "Carmilla"
Imagem: Reprodução

História bobinha

Assim como o original, a versão da web série se passa na Estíria, na Áustria. O enredo gira em torno de uma aluna do primeiro ano de jornalismo que investiga o desaparecimento de sua colega de quarto, até que a diretoria da universidade envia uma substituta chamada Carmilla para dividir a acomodação com ela. A série foi vista mais de 70 milhões de vezes no YouTube, em 180 países, e legendada pelos próprios fãs para 18 idiomas diferentes.

Adriana, particularmente, define a história como "bobinha". "É bem infantil, superficial. Eu nem assisti até o fim." Ao que parece, a única herança aproveitável de "Carmilla" foi o romance iniciado com Mariam.

Em particular

Ambas frequentavam uma página de fãs da série no Facebook, e um dia Mariam e outra garota enviaram mensagens às participantes, dizendo que haviam criado um grupo no whatsapp. "Ela perguntou se eu queria participar, mandei meu número. Bom, quando eu vi a foto dela, pensei: 'Uau, que linda."

As duas se buscaram em particular. Foi Mariam quem tomou a iniciativa. Em dez dias, elas estavam se comunicando por vídeo. "Eu nem tinha Skype, sou muito tímida. Parece clichê, mas assim que a vi, deu um clique", lembra a empresária.

A namorada anterior de Adriana, com quem ela estava se relacionando havia três meses, reagiu mal ao "clique". "Eu quis terminar com ela antes de me envolver a Mariam. Contei o que tinha acontecido, desde "Carmilla", ela me perguntou porque eu comecei a assistir a uma série lésbica sozinha; enfim, foi complicado..."

Pedido de casamento

Adriana pediu Mariam em casamento no alto de um trio elétrico, durante a parada gay de São Paulo. As duas trocaram alianças, e agora estão noivas. O casal tem planos de morar junto, aqui e no Egito. "Nós queremos um meio-termo, porque eu amo a família dela. A gente se deu muito, muito bem. A mãe dela me apresenta como filha."

Com relação à convivência de seis meses com Mariam, durante a quarentena, Adriana considerou "um teste". "Antes disso, o máximo de tempo que a gente passou junto foram dois meses e, mesmo assim, aqui na casa da minha mãe. Tenho total liberdade, mas é diferente de um confinamento, como o que aconteceu em decorrência da pandemia."

Brigas, só à distância

Por enquanto, as noivas se comunicam em inglês. Adriana diz que já entende um pouco de árabe, mas está longe de escrever: queixa-se de que "é a segunda língua mais difícil de se aprender". De acordo com suas pesquisas, a primeira é o mandarim.

Comento que relacionamentos mantidos em uma terceira língua tendem a ser longevos, já que as eventuais brigas costumam ser adiadas. Ela diz, rindo, que mesmo assim elas discutem muito. "Não pessoalmente, só à distância."

O islamismo egípcio a levou a entrar no armário pela primeira vez na vida - Paulo Sampaio/UOL - Paulo Sampaio/UOL
O islamismo egípcio a levou a entrar no armário pela primeira vez na vida
Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Sara Hegazi

Adriana não teria problemas em se identificar neste texto, mas pediu para trocar seu nome, com receio de que sua noiva sofresse perseguição no Egito. Em alguns países de maioria muçulmana ou cuja religião dominante é o Islã, a homossexualidade é duramente punida — eventualmente, até com a pena de morte.

Durante a entrevista, ela cita duas vezes a trágica história da militante LGBTQI+ egípcia Sara Hegazi, que em 2017 foi presa e torturada por levantar uma bandeira com as cores do arco-íris, que representa o movimento, durante um show de música. Exilada, Sara se matou no Canadá.

"Será que essa matéria repercute fora do Brasil?", pergunta a entrevistada.

Eu digo, rindo, que espero que sim. Ela diz, séria, "é melhor que não". Compreensível.

* Nomes trocados