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Ambulante ganha a vida com colaboração de garotas de programa em SP

O vendedor ambulante Ricardo Correia, 55, vende churrasquinhos na avenida Indianópolis, na zona sul de São Paulo - Marcelo Justo/UOL
O vendedor ambulante Ricardo Correia, 55, vende churrasquinhos na avenida Indianópolis, na zona sul de São Paulo
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Paulo Eduardo Dias

Colaboração para TAB

03/02/2021 04h01

Caía uma garoa fina quando o vendedor ambulante Ricardo Corrêa, 55, chegou ao cruzamento da Avenida Indianópolis com a Alameda dos Quinimuras, no Planalto Paulista, zona sul da capital paulista. Ele tira seu sustento vendendo espetinhos, sanduíches e bebidas para as profissionais do sexo que trabalham em um dos mais conhecidos pontos de prostituição de São Paulo.

A avenida carrega a pecha de ser um prostíbulo a céu aberto, com mulheres cis e trans usando roupas curtas ou apenas um tapa-sexo. Corrêa divide com elas o espaço de trabalho, contou à reportagem de TAB.

A Indianópolis é um campo de prostituição, mas tudo que tenho na minha casa tirei daqui
Ricardo Corrêa, vendedor ambulante

Há 15 anos, Corrêa deixa diariamente sua residência, a cerca de um quilômetro da avenida, e percorre com seu carrinho várias vezes o trecho de 700 metros da Indianópolis entre a Avenida Afonso Mariano Fagundes e Campina da Taborda, além da Alameda Irerê, uma paralela à via principal.

Ricardo Correia, 55, vende churrasquinhos na av. Indianópolis, zona sul de São Paulo - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Ricardo Correia, 55, vende churrasquinhos na av. Indianópolis, zona sul de São Paulo
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Nos últimos meses, o número de clientes está menor, segundo ele, devido à pandemia de covid-19. A queda, porém, não é tão brusca como seria de se supor.

"Está 80% do normal. Era para estar cheio de garotas, mas não tenho que reclamar da pandemia", conta ele, que só se afastou das ruas durante 50 dias, entre março e junho de 2020, por precaução.

Durante esse período, diz, "toda minha reserva esgotou". E ele teve de voltar ao trabalho. Para complementar renda, recebeu três parcelas de R$ 600 e duas de R$ 300 do auxílio emergencial. Atualmente, ele afirma que a volta do dinheiro disponibilizado pelo governo federal viria em boa hora.

Enquanto a reportagem esteve no local, nem Corrêa nem as garotas de programa usaram máscara. O vendedor ambulante diz que reserva o acessório para lugares fechados ou com grande quantidade de pessoas. "Tenho medo é dos políticos. Essa doença sempre existiu, agora só mudou o nome", frisou.

O homem conta que sempre trabalhou nos bastidores da gastronomia, seja como garçom, chapeiro ou churrasqueiro, até que ficou desempregado, em 2005. Com apenas R$ 100 no bolso, comprou quatro caixas de chocolate para vender nas ruas de Moema e no entorno do aeroporto de Congonhas. Na estreia, vendeu todas. No dia seguinte, comprou outras oito e, a partir daí, passou a duplicar o estoque a cada jornada.

Em paralelo aos chocolates, comprou uma bicicleta cargueira para vender salgados e bebidas na Avenida Indianópolis. Nos primeiros sete anos, oferecia apenas coxinhas, água, refrigerante e café com leite. "Sempre quis vender espetinho, mas um colega já vendia e não quis atravessar."

Quando o outro ambulante deixou o local, ele assumiu. Além dos espetinhos, que podem ser apreciados com uma variedade de molhos, ele oferece salada de fruta, misto quente e cachorro-quente.

Ricardo Correia e suas "chefes" na av. Indianópolis, zona sul de São Paulo - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
Ricardo Correia e suas "chefes" na av. Indianópolis, zona sul de São Paulo
Imagem: Marcelo Justo/UOL

Ele começa às 22h, mas seu dia começa mais cedo: por volta das 13h, vai ao mercado atrás de frutas frescas para a salada. Às 21h30, já está pronto para colocar o carrinho na rua. A cada dois dias, congela 200 espetinhos de carne e frango.

Durante o período em que a reportagem esteve no local, Corrêa não parou um minuto. A todo momento era chamado pelas garotas. Algumas delas, mais íntimas, possuem o número de seu celular e o acionam por mensagem.

Após atender duas garotas na Indianópolis, Corrêa convida a reportagem a ir com ele até a Alameda Irerê, para onde algumas de suas "amigas" o chamaram.

Lá, um grupo de cinco transexuais e uma garota de programa abraça Corrêa. "Estamos com fome", dizem, quase que ao mesmo tempo para, em seguida, disparar:

— Faz um espeto de frango!

— Eu quero um de carne!

— Me faz dois mistos quentes.

— Eu quero um suco, Coca-Cola, hoje, não.

São esses pedidos que fazem Corrêa tirar quase dois salários mínimos por mês. Com o reajuste de 2021, o valor está em R$ 2.200.

Enquanto os espetinhos são colocados na grelha, a reportagem se apresenta às profissionais. Algumas se mostram desconfiadas. Outras aceitam falar e não param mais. Sem serem questionadas, entram em vários assuntos de cunho sexual. Uma diz que são muito procuradas por casais. Outra indica quais os três motéis da região que as atendem.

O trio de amigas transexuais Fernanda Pavanelli, Pamela Caroline, ambas 20, e Melissa Sales, 19, todas vindas de Manaus, se deixa fotografar e elogia Corrêa. Gostaram da dedicação dele por estar ali todos os dias "matando a fome das garotas". "Ele é a nossa salvação", diz Fernanda, com um sorriso no rosto.

Se o vendedor ambulante parou por uns dias durante a pandemia, a garota de programa Gabi Passos, 44, disse que foi a época em que mais trabalhou. Foi procurada por homens e casais.

Para mim foi normal. O proibido é mais gostoso. Foi a época em que mais ganhei dinheiro
Gabi Passos, garota de programa

Solteiro e pai de dois filhos, um de 30, outro de 25 anos, Corrêa só demonstra irritação quando indagado sobre o preconceito enfrentado pelas profissionais que trabalham ali. Por lá, diz, já viu muitas humilhações. "A sociedade que mete o pau nas meninas é amesma que sai com elas." Diz que as meninas são chefes. "Sem elas, minha empresa não anda. Elas são minha locomotiva, puxam o trem."

Ele diz que nunca usufruiu dos serviços de suas clientes, mas têm um jeito peculiar de chamá-las. "Olha quantas namoradas eu tenho", brinca, sinalizando o grupo de Manaus.

Como nem sempre os programas aparecem, Corrêa permite que as "chefes" mais chegadas comprem fiado. "Anoto no caderninho da promissória. Depois elas me pagam. Não dão calote."

Principal inimigo dos vendedores ambulantes, o rapa, como é conhecida a fiscalização da prefeitura, vez ou outra dá as caras no local, mas, segundo Corrêa, "a natureza nunca deixou que se encontrassem".

O mesmo não ocorre com a polícia. A todo instante, viaturas do 3° e do 12° Batalhões de Polícia Militar, que atuam na área, passam pela Indianópolis e suas paralelas. Segundo as garotas de programa, os vizinhos das mansões do Planalto Paulista acionam os agentes, incomodados com o barulho das risadas e das conversas com possíveis clientes.

O ambulante Ricardo Correia, 55, vende espetinhos na av. Indianópolis, zona sul de São Paulo. A maior parte de seus clientes são travestis - Marcelo Justo/UOL - Marcelo Justo/UOL
O ambulante Ricardo Correia, 55, vende espetinhos na av. Indianópolis, zona sul de São Paulo. A maior parte de seus clientes são travestis
Imagem: Marcelo Justo/UOL

É alta madrugada, a reportagem está prestes a deixar o local e Corrêa conta o que realmente coloca sua vida em risco durante o trabalho. Durante o expediente na Indianópolis, já foi atropelado três vezes por motoristas bêbados. "Meu carrinho fica destruído, mas nunca sofri um arranhão."

Por volta das 3h, o homem se prepara para encerrar o expediente. Abraça as meninas para se despedir. Uma delas pede mais um espeto e que ele seja passado na farinha. Mesmo cansado, Corrêa atende ao pedido.

A essa altura, a avenida Indianópolis está praticamente vazia. Não há carros nem trabalhadoras do sexo, que partiram para atender clientes. É quando Corrêa toma o rumo de casa. "Mais tarde estou de volta."