'Xavier informa': o homem que passa o dia cobrando autoridades em Salvador
Todos os dias, a internet gera 2,2 milhões de terabytes de dados, o equivalente a 550 milhões de filmes longa-metragem. Trocar dois minutos de conversa com José Jorge Xavier, 50, gera a mesma sensação de ser metralhado por ideias. A cabeça dele guarda lugar para tudo, as informações são apresentadas só com começo. Depois da primeira pergunta, não há pausa para o respiro. É um assunto engatado no outro. Número atrás de número, ele dispara na nossa cara as mazelas da cidade. Xavier só para por um motivo: confeccionar mais uma das placas que espalha todos os dias pelas ruas de Salvador.
Quem roda pela capital baiana já deve ter visto em algum lugar a placa "Xavier Informa", com uma denúncia escrita a mão, em letras de fôrma, cobrando melhorias. As placas chamam a atenção pelo seu caráter enfático e direto. Algumas vezes, pedem da gestão municipal obras de infraestrutura e transporte; em outras, denunciam irresponsabilidade com os gastos públicos. A cartilha de reivindicações é bastante variada: do corrimão da escada até o ultrassom da UPA, Xavier cobra, sempre referendado pelo número do ofício que protocolou na gestão municipal. Passar uma tarde com ele, como fez a reportagem do TAB, é entrar em mundo paralelo frenético de querenças.
Xavier é agitado e acumulador. Tomou para si uma missão que deveria ser compartilhada por toda a sociedade: acompanhar o gasto e a aplicação da verba municipal. Leva a prática à exaustão. Colhe informações de entrevistas de prefeitos, secretários e vereadores ao Diário Oficial, passando pelo Portal da Transparência ou pela queixa de um conhecido. Depois, seleciona aquelas mais urgentes — segundo seus próprios critérios —, protocola um ofício no órgão competente e passa dias acompanhando. Se nada for feito, entra em ação. Escreve dados da melhoria não realizada em portas velhas e pedaços de madeira, escolhe um ponto estratégico da cidade e vai lá deixar o informe.
Ele sabe que só pode cobrar se já tiver feito uma solicitação formal. Parece conhecer bem a burocracia do Estado. Aprendeu a fazer isso com o pai, uma espécie de Robin Hood dos serviços públicos. "Ele sempre ajudava a comunidade. A Embasa (Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A.) vinha e desligava a água à noite. Meu pai ia com a gente e religava na tora. Antes do dia raiar, ia lá e desligava de novo", lembra. Tinha 12 anos na época. Também percorria as ruas do bairro da Federação, onde vive até hoje, com o pai, para coletar assinaturas de abaixo-assinado.
Uma tarde com Xavier
Ao subir a escada da casa de três andares, a reportagem de TAB encontra a sala completamente tomada por portas, pedaços de PVC, lâminas de MPF e outras superfícies que Xavier sai catando em lixões e pelas ruas, ou recebendo de amigos e apoiadores. Foi a solução encontrada para economizar na produção dos informes. Todos os outros espaços são iguais. Ele mesmo tem dificuldade em ultrapassar os obstáculos.
Enquanto atravessa o amontoado de portas ainda em branco e os galões de 18 litros de tinta, relembra os feitos do pai para explicar como começou a criar as placas de denúncia, em 2006. Mas Xavier logo se perde na quantidade de dados buscados na memória; começa a citar os ofícios e ecoa a voz grave e rouca por todos os lados. É como se houvesse uma revolta permanente sempre engatilhada, à espera de um interlocutor. Xavier não cansa.
Cita o pedido pelas vacinas da covid-19, o do restabelecimento da frota de ônibus e logo corre para outro cômodo, onde começa a desenrolar um carretel de folhas ofício, o abaixo-assinado com 2,3 mil assinaturas dos moradores da Federação, reunidas por ele, para o conserto da escadaria do Centro Social Urbano, na Segunda Travessa Pedro Gama. O documento é de 2017, guardado assim como a cópia de todos os ofícios já protocolados na prefeitura, empilhados em um canto.
"Eu não tenho rabo preso", faz questão de repetir. "Sou funcionário público, não sou puxa-saco de ninguém." Xavier é sargento da Polícia Militar da Bahia. A dois anos de se aposentar, trabalha no setor administrativo da corporação. Diz não ter lado político e ter se decepcionado com vereadores que vinham ao bairro somente para ganhar votos. Ou até mesmo nascidos no bairro da Federação, que depois viraram as costas para sua comunidade.
Apesar disso, o histórico político no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) revela uma controvérsia cuja máquina de palavras suprime como dado menor. Em 2020, foi candidato a vereador de Salvador pelo PC do B, com o nome "Xavierfaz". Obteve 3.396 votos. Era a quarta tentativa de alcançar cargo público. Ele concorreu à vereança em 2016 e 2012. Antes disso, em 2010, havia concorrido a deputado estadual.
A rua como outdoor
Xavier nunca vai sozinho às ruas. Sempre está com o amigo Joel, para ajudar a prender as portas e placas em postes, árvores e guarda-corpos de pontes. Ao sair, no domingo à tarde em que foi entrevistado, enquanto colocava as placas presas na parte superior do carro, foi interrompido por um conhecido. O homem queria ajuda com um amigo que está hospitalizado. É assim toda vez que para em alguma rua da Federação.
"Xavier informa: prefeitura, cadê a faixa de pedestres deste local", diz a placa que deixou no Engenho Velho. "Prefeitura cadê: o retorno 100% da frota e os novos ônibus prometidos em campanha política", foi para a frente da reitoria da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Todas as placas têm a data em que a denúncia foi feita. São presas com fios de arame, nem sempre ficam retas e, às vezes, parecem confusas pela mistura das frases em preto e vermelho. "Tem gente que reclama da minha letra, mas o importante é que entendam."
A colocação das placas é sempre acompanhada de um vídeo para as redes sociais. Xavier transita pelos dois mundos: frequenta o ambiente urbano, mas logo depois de fixar suas denúncias, recorre ao virtual para ter mais alcance. Apesar das tentativas, ainda não conseguiu deslanchar na web. Tem 2,1 mil seguidores no Instagram e 434 no Facebook.
Ele demonstra conhecimento do mundo digital ao gravar vídeos curtos, de não mais de um minuto. Sempre inicia as gravações situando o horário, data e local onde grava. "É pau neles, viu, Dinho" assina como legenda da maioria das suas postagens, que também podem ser ouvidas do outro lado da rua, enquanto grava o vídeo, dado o tom da voz. "Eles" não deixa claro quem são, mas olhando o feed completo, fica óbvio ser a prefeitura.
Xavier tenta escapar, ao máximo, do recolhimento das placas pelos fiscais da prefeitura. "Já manjei, eles vêm tirar sempre no domingo", garante. Quando estava com a equipe da reportagem, botou quatro placas. Voltou para casa para pintar mais e saiu de novo. Colocou mais três. Dois dias depois, instalou sete. Não pensa em parar, nem abre brecha para uma pergunta direta sobre isso. Tira da cabeça o nome de gestores do passado e se orgulha: já teve um ano em que protocolou mais de 300 ofícios, quase um por dia.
Xavier cobra, Xavier insiste, Xavier faz. São algumas das frases que encontramos entre calendários, santinhos e xerox acumulados em casa para distribuir entre amigos e conhecidos, uma espécie de prestação de contas dos feitos conquistados como líder comunitário. A construção de posto de saúde, a reforma da praça no final de linha de ônibus e a iluminação LED são suas maiores conquistas. Está tudo no calendário 2021. Xavier pediu e Xavier conseguiu. "Preciso falar pelo povo que não tem tempo, pois trabalho um dia e folgo três."
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