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De Paulo Coelho a Paulo Freire, Blazka Müller é voz do Brasil na Eslovênia

Blazka Müller com Paulo Coelho em Liubliania (Eslovênia), nos anos 1990 - Acervo Pessoal
Blazka Müller com Paulo Coelho em Liubliania (Eslovênia), nos anos 1990 Imagem: Acervo Pessoal

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

24/04/2021 04h00

Manhã de 7 de abril. Um grupo de 18 estudantes universitários, oriundos de diversos cursos de humanidades, está conectado no mesmo canal do Zoom para mais uma aula da disciplina optativa de língua portuguesa da Universidade de Ljubljana, a mais importante instituição de ensino superior da Eslovênia. Aula on-line, claro, porque os tempos são de pandemia.

Depois de uma breve apresentação do suprassumo da poesia brasileira do século 20, uma das professoras responsáveis pela cátedra, Blazka Müller, pede a palavra e aparece na tela do computador diretamente de seu apartamento no bairro de Siska, zona oeste de Ljubljana, capital eslovena. Seus olhos azuis-turquesa brilham e é nítida a empolgação que ela devota ao comentar a grandeza de um brasileiro chamado Mário de Andrade (1893-1945).

Com a experiência de quem traduziu para o esloveno obras de um espectro que vai de Paulo Coelho a Paulo Freire — passando por Chico Buarque —, ela comenta que deve ser um exercício muito complexo passar para outra língua as particularidades e os meandros de uma obra basilar como Macunaíma.

"Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta", dizia Mário de Andrade, que além de poeta e escritor era musicólogo, historiador de arte, fotógrafo e crítico. Aos 49 anos, Blazka também é múltipla, dessas pessoas que não se contentam com a monotonia de uma profissão e estão sempre extrapolando definições.

Blazka Müller trabalhando em sua casa durante o lockdown - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Blazka Müller trabalhando em sua casa durante o lockdown
Imagem: Arquivo pessoal

Apresentadora de TV, linguista, lexicógrafa, professora de língua portuguesa, jornalista, tradutora, intérprete e atriz. "É a Eslovênia que faz com que as pessoas se tornem assim. Aqui é impossível fazer uma carreira só, às vezes é preciso fazer várias coisas", afirma ela, à reportagem do TAB, enquanto saboreia um cappuccino na mesa externa de uma cafeteria.

Sucesso na TV

Sua trajetória peculiar começou aos 14 anos, quando a TV estatal eslovena convidou adolescentes para testes a fim de selecionar os apresentadores de uma nova atração. Periskop foi transmitido entre 1985 e 1991, sempre com Blazka no elenco. "Era muito divertido. O programa se tornou célebre pelo conceito: era um periscópio que se levantava da nau, chamada Sabedoria, para ver o que tinha no mundo", conta. Foi um sucesso, que chegou a ser exibido inclusive por outras emissoras das repúblicas então pertencentes à Iugoslávia. Educativo e muito bem-bolado, o programa guarda semelhanças com os brasileiros Rá-Tim-Bum e X-Tudo, antigas produções da TV Cultura.

Quando a última temporada estava no ar, Blazka já era uma universitária. Cursou simultaneamente jornalismo e letras. Foi quando decidiu se matricular em uma optativa, um leitorado de língua portuguesa. Encantou-se. "Achava muito exótico", admite. "As aulas eram simples e a professora também nos fazia ouvir música brasileira. Lembro-me de ouvirmos Garota de Ipanema e Desafinado. Fiquei completamente apaixonada."

Blazka Müller apresentando o programa de TV Orion - Stane Susnik/ Cedida por Blazka Müller - Stane Susnik/ Cedida por Blazka Müller
Blazka Müller apresentando o programa de TV Orion
Imagem: Stane Susnik/ Cedida por Blazka Müller

Desde a infância, ela já nutria uma certa obsessão com as coisas de Portugal — e o idioma pareceu-lhe uma consequência óbvia, quase natural. Blazka estudou português em Ljubljana e, depois de graduada, foi se aprofundar passando uma temporada no país que tanto sonhava conhecer. Quando voltou, era fluente. Seguiu nos estudos linguísticos, doutorou-se... Logo estava lecionando na mesma optativa de língua portuguesa que a havia encantado.

Santiago e Jakob

Quando tinha 23 anos, Blazka recebeu o convite para traduzir para o esloveno "O Alquimista", de Paulo Coelho, que começava a despontar mundialmente. Em 1995, saiu "Alkimist''. A tradutora foi ousada ao mudar o nome do personagem principal. "A primeira frase do livro apresenta o personagem principal, um jovem que se chama Santiago. Sendo eu uma tradutora jovem, pensei: isso não significa nada na Eslovênia, ninguém aqui se chama Santiago e isso é estranho em uma história onde se espera uma proximidade", comenta ela, aos risos. "Então defini: vou alterar para Jakob, que é quase o mesmo nome em esloveno."

Com um exemplar do livro já pronto e impresso em mãos, os editores foram recepcionar Paulo Coelho no aeroporto. "Entregaram para ele, que abriu e disse: o que é isso? Jakob? Eu recebi uma chamada ao telefone. Era meu editor dizendo que eu precisava ir urgente ao escritório da editora para me explicar, porque o autor estava zangado com todos", narra ela. "Fui. Abri a porta, disse boa tarde. Paulo pareceu encantado e simplesmente disse: essa jovem é a minha tradutora? Não me importa como chama, pode chamar qualquer coisa, pode ter qualquer nome, o que me importa é que você é minha tradutora!"

O incidente se transformou em amizade. Ela ciceroneou o escritor em suas visitas à Eslovênia — país que o encantou a ponto de depois ser o cenário de um de seus livros, "Veronika Decide Morrer" —, hospedou-se na casa dele no Rio em uma de suas idas ao Brasil, e acabou ainda traduzindo também "Na Margem do Rio Piedra Eu Sentei e Chorei", "O Monte Cinco", "Onze Minutos" e "Amor".

Mas dentre os autores lusófonos, não foi só Paulo Coelho que ela transformou em um produto acessível aos eslovenos. "O Vale da Paixão'', da portuguesa Lídia Jorge e "Budapeste", de Chico Buarque, foram outras obras traduzidas por ela. Em 2019, foi a vez do internacionalmente aclamado "Pedagogia do Oprimido", do pedagogo Paulo Freire (1921-1997), ser lançado na Eslovênia.

Blazka Müller - Joze Suhadolnik/Cedida por Blazka Müller - Joze Suhadolnik/Cedida por Blazka Müller
Blazka Müller
Imagem: Joze Suhadolnik/Cedida por Blazka Müller

"Trata-se de um livro que já era bastante conhecido na Eslovênia, mas só por meio das versões em inglês. Então me pediram para traduzir e eu gostei muito", comenta. "Uma face é Paulo Coelho, e é ótimo que as pessoas [da Eslovênia] conheçam o Brasil por causa dele", acrescenta a tradutora. "Mas também podem conhecer o país por meio de Paulo Freire."

Versátil, Blazka também atacou de lexicógrafa. Em 2006, a convite de uma editora, produziu um dicionário esloveno-português — atualmente esgotado e fora de catálogo. Da enciclopédia Splosni Slovenski Leksikon, é autora de 79 verbetes, todos relacionados às literaturas brasileira e portuguesa.

Como é, para um esloveno, se apaixonar pela língua portuguesa? "Tenho inclinação a nunca escolher passar pela porta larga e aberta, sempre prefiro ir pelas pequenas portas", filosofa ela. "Gosto das coisas incomuns, que não são, digamos, normais".

Quando ela termina o cappuccino, antes de encerrar a entrevista, confidencia seu sonho: que a optativa de língua portuguesa da Universidade de Ljubljana seja transformada em uma habilitação para o curso de letras. Os trâmites para isso, nas esferas administrativas, estão avançados. "Somos o único país da União Europeia sem licenciatura em português. Mas a implementação já está na última fase na agência nacional que julga a qualidade da educação superior. Acredito que teremos uma resposta positiva em breve", diz.