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Há 50 anos, 'Gepeto da vida real' emociona clientes consertando brinquedos

Leandro Primo Capelo, 65, e seu Hospital das Bonecas, Brinquedos e Games - Pryscilla K./UOL
Leandro Primo Capelo, 65, e seu Hospital das Bonecas, Brinquedos e Games
Imagem: Pryscilla K./UOL

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB

19/04/2021 04h00

Na entrada do hospital há uma paciente numa cadeira de rodas, com uma perna e um braço engessados. O que chama a atenção é o fato de ela ser uma boneca. Mais ao fundo, no centro cirúrgico equipado com um monitor cardíaco que apita ininterruptamente, cilindro de oxigênio, suporte para soro e medicamentos, instrumentos cirúrgicos como bisturis e prontuário médico, outra boneca doente está deitada na maca com uma camisola hospitalar, pronta para ser operada.

A UTI, o berçário e uma loja de roupinhas — como as que têm nas maternidades — também ficam no andar térreo. Por onde a vista alcança há pacientes como ursos de pelúcia, cavalinhos, máquina de costura, carros, robôs antigos e exemplares dos primeiros videogames fabricados. Algumas dessas raridades repousam em prateleiras atrás da recepção, onde duas enfermeiras sorridentes recebem clientes humanos e brinquedos.

Uma delas é a professora Géssica Gumieiro, que chega para buscar Lívia, a boneca de sua filha de dois anos, que deu entrada no hospital com um braço solto. "A gente contou para a Elisa que a Lívia estava no hospital tomando remédios. Ela passou o mês inteiro perguntando se o bracinho já estava bom". Pouco depois da alta, aparece o médico que chefia o Hospital das Bonecas, Brinquedos e Games.

Vestido de branco, Leandro Primo Capelo, 65, checa se está tudo em ordem e convida a equipe do TAB para subir até a sala de reuniões. Da mesa oval é possível ver o escritório do doutor, que fica na parte de trás, separado por uma parede de vidro. Um lugar claro, com poucos objetos e o diploma universitário do filho mais velho pregado na parede. O médico de bonecas se senta na cadeira posicionada na cabeceira da mesa e começa a contar como a vida o levou até ali.

Géssica Gumieiro busca Lívia, a boneca de sua filha de dois anos, no Hospital das Bonecas, Brinquedos e Games - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Géssica Gumieiro busca Lívia, a boneca de sua filha de dois anos, no Hospital das Bonecas, Brinquedos e Games
Imagem: Pryscilla K./UOL

Faro de negociante

Mineiro de Itajubá, ele é um "molecão", como se define. Um adulto que não deixa morrer a criança que foi um dia, que amava brincar de taco, bolinha de gude, pião e "mamãe da rua". Outra diversão para ele era ir ao então Hospital das Bonecas, criado pelo avô em 1937, na Penha, zona leste de São Paulo.

O menino observava o pai trocar os olhos das bonecas, pintar a boca ou a sobrancelha delas com um pincel, e a mãe derreter cera para colar os cabelos de nylon. O trabalho artesanal e minucioso o deixava encantado. Foi ali, com uma boneca de borracha, que ele aprendeu o ofício. Já adolescente, Leandro começou a achar tudo obsoleto no hospital. Queria que aquele mundo mágico e lúdico parecesse um hospital de verdade, com direito a uma ambulância.

"Você está louco?", perguntou o pai. Mas ele não se deu por vencido. Pegou uma sacola cheia de olhos de bonecas e saiu sozinho pelas ruas de São Paulo, batendo na porta de casas em bairros nobres com a pergunta "Você tem bonecas para trocar os olhos?". Era bem recebido na maioria das vezes, pois a cidade não era violenta. Passava o dia inteiro na rua e voltava com a sacola cheia de dinheiro.

Depois de cinco anos, veio a recompensa. Com a ajuda do pai, conseguiu comprar uma Kombi 0 km, a mais luxuosa que tinha, e a estampou com o nome do hospital e o símbolo da Brinquedos Estrela, com a autorização da fábrica. A bordo dela, Leandro levava um bloco de pedidos, deixava uma via com o cliente e pedia um número de telefone. Depois comprava dezenas de fichas e ligava de um orelhão para passar o orçamento. Cobrava uma taxa pelo atendimento domiciliar.

'Doutor' Leandro em ação - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
'Doutor' Leandro em ação
Imagem: Pryscilla K./UOL

Quando Leandro disse que o hospital precisava de um telefone, foi acusado de querer moleza. Financiou uma linha, um investimento alto na época, e deixou o pai ainda mais irritado quando comunicou que ia fazer um anúncio nas Páginas Amarelas, que era caríssimo. A essa altura, tinha desistido de ser médico de gente para cuidar de brinquedos. "O que eu faço, e todos os meus colaboradores fazem, é resgatar sonhos. Todas as bonecas e brinquedos têm uma história. E toda história tem um passado. E esse passado marca", reflete.

Essa certeza veio de conversas com os clientes. Bom ouvinte, Leandro registrou várias delas na memória. As de brinquedos comprados no Mappin, cujas parcelas do carnê eram pagas com esforço ao longo de meses. De um adolescente de 15 anos que chorou ao ver um pega-varetas, que lhe trouxe lembranças de quando brincava com o pai, já falecido. De uma mãe que comprou uma boneca num dia chuvoso, o embrulho caiu dentro do ônibus, mas chegou intacto para ser entregue à filha no seu aniversário.

Dia de médico de verdade

"Dá um cafezinho para nós", Leandro pede a um dos dois funcionários da área de marketing que estão na mesa. Entre um gole e outro, conta que anos atrás estava numa das quatro unidades do hospital, localizada no Itaim Bibi, quando uma cliente quis ser atendida por ele pessoalmente. Era uma segunda-feira. Chegou ao apartamento dela, no 13º andar, nos Jardins, para buscar 14 bonecas alemãs de porcelana. Examinou todas e as embrulhou em plástico-bolha.

Enquanto conversavam e tomavam um cafezinho, o interfone tocou. Era a vizinha do 7º andar, aflita, querendo falar com Leandro. "Pois, não?", ele disse. "O senhor é médico?". "Sou um deles". "Pelo amor de Deus. O meu pai está enfartando. Desça aqui". "Ô, moça...". "Venha. Eu tenho dinheiro para pagar", ela interrompeu. "Está bem. Estamos descendo", disse. A cliente acompanhou Leandro, que estava todo de branco, assim como o "enfermeiro". Foram recebidos pela esposa e filha do Sr. João, que estava ofegante no sofá.

O assistente de Leandro, que tinha trabalhado na enfermaria do Exército, o chamou de canto afirmando que o homem precisava ser colocado no chão. Ambos o deitaram no tapete. Em seguida Leandro começou a fazer massagem cardíaca, orientado pelo "enfermeiro", que ficou responsável pela respiração boca a boca. Assim que o Sr. João reagiu ao procedimento, os "socorristas" o sentaram numa cadeira e o levaram para a ambulância.

Quando abriram a porta do veículo, as mulheres não viram nada dentro e ficaram chocadas. "Nãããão. Isso aí não é...". "Não dá para explicar agora. Vamos socorrer o seu marido", disse Leandro. Esclareceu tudo enquanto dirigia até o Hospital 9 de Julho. Sr. João recebeu três pontes de safena e, após a recuperação, ambos se tornaram grandes amigos.

Leandro no Hospital dos Brinquedos - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Leandro no Hospital dos Brinquedos
Imagem: Pryscilla K./UOL

Emoção também é coisa de adulto

Enquanto fala, as expressões de Leandro entregam que ele é um sentimental. "Deus me deu esse dom. Sou um Gepeto da vida real. O Gepeto veio para realizar sonhos", diz. A referência ao personagem do romance As aventuras de Pinóquio, que fabricava bonecos de madeira, é apropriada. Ele passou anos aprimorando técnicas de consertos. Após a entrevista, ele se levanta da mesa de reuniões e mostra o que fazia antigamente.

Seus gestos são precisos e naturais. Troca peças, manuseia fios, remonta uma boneca Amiguinha dos anos 1970 e um videogame com destreza, cuidado e olho clínico. Hoje administra o hospital com a sua experiência e as ideias modernas do filho mais velho, que é engenheiro de produção, e dos funcionários. O filho o aconselha a parar de trabalhar para ter tempo de viver outras coisas. "Tenho que tirar o pé do acelerador, mas isso aqui faz parte da minha vida", suspira.