Vandalizado, observatório astronômico agoniza na periferia de Diadema (SP)
Somos todos periféricos desde que Copérnico, Galileu, Kepler e Newton comprovaram que a Terra não é o centro do universo. Mesmo sabendo dessa condição humana, surpreende muito avistar entre as lajes do morro do Jardim Inamar, na periferia de Diadema, o brilho da cúpula metálica de um observatório astronômico.
Mais de perto, porém, percebe-se que o local entrou no mesmo buraco negro onde muitos espaços públicos, em especial os voltados para a ciência, acabaram parando nos últimos anos no Brasil. Janelas quebradas, fiação roubada e equipamentos espalhados pelo chão mostram o que restou das invasões e vandalismos frequentes nas instalações desde 2017.
Sua construção começou 30 anos atrás. Inaugurado em 1992, até hoje é o único observatório municipal na Grande São Paulo. Como a política local é tão inconstante quanto a superfície solar, esse espaço singular alternou bons e maus períodos. Hoje vive o pior deles.
"O prefeito que bancou o projeto nunca se reelegeu, e travamos uma luta ciclópica porque o observatório sempre foi um corpo estranho para todas as administrações, oscilando da secretarias de Educação para a de Cultura", conta Ozimar Pereira, 56, um dos fundadores da Saad (Sociedade de Astronomia e Astrofísica de Diadema), entidade que fomentou a criação e a manutenção do mirante celestial.
Vulnerável e sideral
"A maioria dos amigos com quem brincava na rua foram mortos ou presos. Se eu não tivesse ficado fascinado pelos meteoritos, constelações e galáxias que observava pelo telescópio, não ia dar certo na vida. Tudo começou porque fiquei atraído pelo prédio esquisito que via da janela de casa", conta Marcelo Carvalho, 40, que hoje é professor de robótica.
Órfão e criado por dois tios, ele não ligava para a escola e não via significado em contas e fórmulas. Até que começou a calcular as latitudes, longitudes e extensões das tempestades de Júpiter. Junto com três outros alunos, fez por dois anos um estudo tão detalhado sobre o tema que foi selecionado para o prêmio Jovem Cientista, e viajou para Natal (RN) para apresentar os resultados na reunião anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).
"Tinha um vigia noturno que não entendia nossa pesquisa e botava todo mundo pra fora. Então, a gente pulava o muro e ficava quietinho no escuro. Levávamos guaraná e pão para aguentar até as 5h da manhã. Nosso barato era observar Júpiter e fazer um desenho a lápis por hora de sua atmosfera para documentar as mudanças nela", lembra Marcelo.
Atualmente, as viagens siderais são outras por lá: como não tem segurança à noite nem cadeado, é frequente a presença de pessoas que vão lá para se drogar ou para achar algo de valor para trocar por entorpecentes. Como os cometas vagabundos, que aparecem para logo sumir, moradores de rua buscam às vezes guarida ali. Pelas camisinhas encontradas no chão, vê-se que casais da vizinhança aproveitaram bem a escuridão e o silêncio desse cantinho do universo.
Em 2002, Marcelo ficou no vácuo quando a prefeitura cortou a verba para os monitores do local. "Eu sabia dar palestra sobre astronomia, mas isso não dava dinheiro. Tentei entrar em física pela USP. Parei na segunda fase [do vestibular]. Fui estudar matemática em uma faculdade particular. Tinha que trancar a cada seis meses para trabalhar e conseguir dinheiro para a mensalidade", conta. Ficou oito anos se revezando entre o telemarketing e a trigonometria, até se formar.
"Hoje, falo para todos que fui salvo pela educação e a ciência, e tento inspirar meus alunos. O observatório e o centro cultural ao lado foram fundamentais para o bairro e para mim."
Estrelas se apagam
Encravado entre a rodovia dos Imigrantes e a represa Billings, o Jardim Inamar surgiu de um loteamento, em meados da década de 1960. Logo depois, a área recebeu os desalojados da favela do Vergueiro, a maior de São Paulo à época, numa área que é ocupada atualmente pelo enobrecido bairro Chácara Klabin.
A industrialização do ABCD (Diadema é o D da sigla) garantiu um fluxo constante de moradores. O município de perfil operário foi o primeiro do país onde tremulou a estrela vermelha do PT — o ex-ferramenteiro baiano Gilson Menezes foi eleito prefeito em 1982, meses após o partido político ser reconhecido oficialmente.
Na gestão de outro petista, José Augusto Ramos (1989-1992), foi erguido e inaugurado o observatório. Em 1998, Menezes, já no PSB, reformou e ampliou o local. As administrações se sucederam com fases de atividades e interrupção, até que, em meio ao descaso governamental, o local começou a sofrer depredações, a partir de 2017.
"Todo político acha bacana, exótico, mas colocar dinheiro, que é bom, nada. Marcam reunião para bater papo, vem com a conversa mole de sempre. A última gestão prometeu reforma, mas liberou uma verba que não deu nem para pintar as paredes", reclama Pereira.
Após contato da reportagem do TAB, a secretaria de Comunicação de Diadema, com o recém-eleito petista José de Filippi Júnior à frente,limitou-se a dizer que "o observatório está fechado desde 2013, quando a administração anterior [do PV] encerrou suas atividades", e que "não é possível visitar o local". Apesar das mensagens perguntando os planos da prefeitura, não houve resposta oficial.
O feirante celestial
"Eu saía todo dia logo cedo para trabalhar na feira e, olhando o céu da madrugada, fiquei intrigado com os brilhos que mudavam de lugar", recorda Rafael Gonzaga, 35, sobre tamanha curiosidade que o levou até um mestrado em astrofísica estelar. Aos 12 anos, ele ajudava a família na barraca de legumes de manhã. E à tarde, na escola, pesquisava na biblioteca e perguntava para os professores para conseguir entender o que via lá no alto. Até que um deles falou do observatório.
"Eu passava direto na frente dele, mas via a cúpula e achava que era uma igreja. Fui lá com meu caderno de anotações e, sozinho, consegui identificar Marte, as estrelas Plêiades e a constelação de Escorpião. Nesse momento, nasceu o professor Rafael."
Um fato curioso é que essa cúpula teve sim um passado religioso. A estrutura de madeira e cobre foi importada da Alemanha há exatos 100 anos, junto com uma luneta, pelos monges beneditinos, que montaram a partir de 1921 um observatório na zona norte paulistana, no atual bairro Jardim São Bento. Só que o entusiasmo durou até a década de 1940, quando o equipamento foi parar em um depósito até ser comprado por um empresário que era astrônomo amador. Quando ele morreu, seus herdeiros venderam a cúpula para a prefeitura de Diadema — e a luneta histórica foi para o observatório municipal de Piracicaba, no interior paulista.
O pó cobre os móveis, as carcaças de computadores, os mapas da lua e as fotos amareladas pelo tempo e o abandono. O telescópio original está arquivado atualmente na secretaria de Educação de Diadema. E os únicos objetos reconhecíveis no céu são três pares de tênis pendurados na fiação que ainda não foi furtada. Na vizinhança, começam ao redor das 19h os cultos nas igrejas neopentecostais, onde os fiéis apenas enxergam Deus e anjos no firmamento.
Rafael mora e trabalha perto. É tomado por lembranças quando olha para o observatório. "É triste testemunhar o descuido com um equipamento público muito bom. É um desperdício de talentos para a ciência, porque o estudante ali era protagonista do conhecimento e se sentia muito estimulado."
A indiferença universal
"A gente fez vaquinha para comprar cadeados, mas os invasores escalavam as grades e entravam. Depois quebraram os cadeados." O vizinho Victor Rondon, junto com três outros estudantes, dava minicursos de astronomia no local até que a pandemia encerrou de vez a atividade. Eles usavam seus telescópios móveis particulares, afinal o fixo já tinha sido retirado. Sem ajuda oficial, eles levaram até astrônomos com passagens pela Nasa e pela Agência Espacial Europeia para ministrar palestras por lá.
Victor, 23, trabalha dando suporte técnico em uma empresa de vigilância. Apesar de colecionar certificados de astronomia, nunca conseguiu tempo para se preparar, enfrentar o Enem e tentar uma graduação de física. Sonha entrar na UFABC (Universidade Federal do ABC) e ver o observatório revitalizado após a pandemia.
Quem olha o céu é levado para outro mundo e outra percepção. Nunca se está parado: damos rodopios nesse carrossel de dias e noites chamado Terra, viajamos numa excursão anual em volta do Sol e vamos de carona na expansão do universo. Percebemos que, mesmo estáticos diante de mais essa inércia governamental, estamos ao mesmo tempo flutuando no infinito, levados por vários caminhos que se misturam e se confundem.
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