'Nunca fui normal': a vida dos cuidadores que têm até 200 gatos resgatados
De tanto entrar em casa de cócoras, aninhar-se entre arbustos e comer peixe quase todas as manhãs, Junior já se considera quase gato — e tem 150 felinos para lhe fazer companhia. Dentro da restinga, a poucos metros da praia, em uma abertura na vegetação rasteira, ele fez casa. Na areia revestida de papelão improvisou piso, cama e proteção. Com bacias plásticas, caixas vazias, um colchão e um fogão a lenha, há dois meses, o local virou seu endereço fixo.
A reportagem de TAB está na Avenida Octávio Mangabeira, na orla de Piatã, a 25 km do centro de Salvador (BA). Despercebida por muitos que cruzam a longa via, a região virou conhecido ponto de abandono de gatos na capital baiana. Agora, é também residência de Luiz Carlos Santos da Conceição Júnior.
O tatuador de 35 anos vai desviando dos animais em cima dos "móveis" e apresentando a divisão de espaços, antes exclusivos dos bichanos. É ele o responsável por alimentar, duas vezes ao dia, aqueles que esperam por uma adoção — que quase nunca chega. "Aqui é tipo um refúgio meu; um ponto de reflexão", descreve.
Na natureza selvagem
O dia de Junior começa logo cedo. Ao raiar do sol, se dirige à orla, em busca de pescadores que sempre aceitam ajuda para puxar as redes de arrasto de dentro do mar. Em troca, ganha o café da manhã — peixe que assa no fogão a lenha, para delírio coletivo dos felinos. Depois, maneja a saca de ração da semana e divide, em pequenas porções, os 50 kg de mantimentos que duram uma semana. A água doce que pega para si também serve aos companheiros, servida em pequenas embalagens plásticas ao longo de 50 m de orla, em várias entradas de um mesmo arbusto na restinga.
Quando termina, às vezes dá tempo de oferecer tatuagem de henna na praia ou pegar um bico. No fim da tarde, tudo se repete.
Junior conhece todos os animais dali, mas apego mesmo tem por Pintado, um gato adulto que não sai de sua cola, e mais quatro filhotes que viciaram em seu colchão. O homem é observado de perto pelos cuidadores que doam comida e, frequentemente, chegam junto da colônia para aplicar remédios aos gatos mais necessitados. "Aqui é bom pra mim e eu me amarro em cuidar deles. Não ganho nada pra fazer isso, mas os cuidadores sempre aparecem, me dão dois, três, cinco reais. Por semana, faço R$ 40, R$ 50 e já dá pro gasto", conta. Com o recebido compra feijão, óleo e artigos de primeira necessidade. Mas não reclama.
Das poucas coisas que carrega consigo, se orgulha da camisa do Milan, sua "marca registrada". "Já estive bem pior e não me dou bem com a minha família que mora por aqui", resume. "Aqui a gente é livre, não tem ninguém pra falar nada." A mãe, de quem sente falta, mora em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. E os três filhos, de 16, 10 e 5 anos, moram com as mães. "Melhor assim."
Questionado sobre o que melhoraria na própria vida e sobre ser feliz, perde as palavras e o sorriso característico. Murmura apenas "mais ou menos" um punhado de vezes. Passa a mão por entre os galhos e só diz ser bom morar ali.
Amor para sete vidas
A qualquer dia, a casa de Irla explode e saem gatos voando por todas as janelas. É o que, volta e meia, alerta o seu marido, Ricardo. "Abro o guarda-roupa e sai gato; nas gavetas, gato; da máquina de lavar saem gatos", brinca, evidenciando o que muitos chamariam de compulsão. "Já avisei a ele para não me fazer escolher entre ele e os gatos, porque sabe que eu os escolheria", diz, categórica, a cuidadora e ex-comerciante.
Em cinco anos, Irlaneide Carmem dos Santos, a dona Irla, 52, teve cinco lares, mas não por opção. Enquanto mantinha contato com TAB, o proprietário do imóvel em que vivia "convidou" sua família a deixar o local. É que nem todo vizinho releva dividir espaço com 108 gatos e 15 cães — o número de bichanos em sua residência já chegou a 200. "Nunca fui uma pessoa normal. Desde adolescente, tinha cinco, seis... E, vou te dizer, não quero deixá-los sozinhos. Faz tempo que não sei o que é festa, viagem, essas coisas. Quero que eles saibam que tem alguém por eles 24h por dia", resume.
Desde 2016, a paixão virou dedicação exclusiva. A casa virou abrigo para gatos resgatados da mesma colônia de Piatã, onde Junior mora. A rede de "gateiras" SOS Gatinhos Piatã ajuda na manutenção e no aluguel do espaço. Para complementar renda, Irla usa a residência como lar temporário ou hotelzinho e disponibiliza o "apadrinhamento" individual dos bichanos, com contribuições de interessados em ajudar, que variam de R$ 10 a R$ 50.
O custo, que já era grande, ficou ainda maior. A família se mudou para uma espécie de chácara em Cassange, a 10 km do antigo endereço. O movimento foi uma tentativa de, finalmente, deixar de lidar com reclamações (que iam de barulho a odores) e dar mais espaço aos animais. Agora, as contas mensais chegam a R$ 7 mil. "Nesse tempo, confesso, já cheguei a ter momentos muito difíceis, a passar necessidade mesmo; e eu não tirei minha vida por causa deles. Sabia que ninguém ia cuidar como eu e provavelmente eles sofreriam, não tem ninguém por eles. Mas Deus deu um jeito", conta.
Abandono de toda 'espécie'
"Todo dia tem pelo menos um abandono aqui em Piatã. Dias como hoje são um milagre; não teve nenhum e ainda adotaram dois. Isso quando os vizinhos não põem veneno por aí", lamenta a tecnóloga em radiologia Isaura Santos Souza, 30, que já soma 19 felinos em casa. Enquanto conversava com a reportagem, sua sobrinha de 9 anos a procura chorando: "acabaram de deixar", disse, ao mostrar uma caixa de papelão com quatro filhotes, com no máximo seis dias de nascido.
Esses cuidadores de animais ajudam a descrever problemas sociais que histórias e fotografias isoladas não revelam. Muitas vezes, há quem faça uso de recursos que sequer possui para ajudá-los a viver e para fazer a diferença.
Pessoas em situação de rua na capital baiana somam entre 14,5 e 17,3 mil pessoas, de acordo com o último levantamento do Projeto Axé de Defesa e Proteção da Criança e Adolescente, de 2017. A cidade dispõe de 16 abrigos espalhados em seu território, com um total de 950 vagas para humanos. Já para animais, não há estimativa desse número, nem abrigos para espécies de pequeno porte.
De acordo com a prefeitura de Salvador, o abandono de gatos em Piatã vem numa crescente durante a pandemia, o que motivou parceria com polícia e guarda municipal no local. Segundo a diretora de bem-estar e promoção animal, Tainara Ferreira, no entanto, ninguém nunca chegou a responder a inquérito.
A pasta negocia a instalação de câmeras na orla para registrar e identificar os autores dos abandonos, mas não há previsão de início de atividades. Ela reforça que placas de carro, fotos e vídeos podem fazer parte de denúncias formalizadas pelo telefone 156 e lamenta que, normalmente, não há muita informação nas denúncias. "A gente exige muito dos órgãos públicos para que instaurem políticas públicas, mas se a sociedade não se conscientiza não adianta, enxugamos gelo."
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