A rotina de uma funerária em Florianópolis no auge da pandemia
Subiam quatro pessoas — duas filhas, um filho e um primo —, cada um numa ponta da maca de metal onde o caixão bege estava disposto. À frente, vestindo capa protetora amarela, botina preta e meia até o joelho, o coveiro Mario Cizino, 50, os guiava rumo ao jazigo de pedra em que Saulo Firmino seria enterrado. Logo atrás, as respectivas esposas e parentes acompanhavam a irmã do falecido, uma senhora de cabelo alvo e corpo robusto. No total, estavam presentes oito pessoas para o enterro. Uma das filhas ficou para trás, na capela do velório, onde cuidava de seu bebê recém-nascido.
Ninguém emitia um som sequer, nem mesmo chorava. Mario foi auxiliado por Márcio Campos, 56, coveiro um pouco mais experiente na lida ("acho que já enterrei mais de 50 mil pessoas"). Notando que ninguém se manifestava, os trabalhadores perguntaram se já podiam selar o túmulo, ao que os filhos assentiram.
O caixão foi deixado sobre outros dois que ali jaziam, e o silêncio continuou a reinar enquanto os coveiros cimentavam a cova, instalando a segunda camada de breu do defunto, logo após o próprio féretro. Juntos, moveram a tampa de pedra e selaram a escuridão.
Saulo morreu aos 67 anos. Foi caseiro a maior parte da vida, mas já estava aposentado quando foi internado para fazer uma cirurgia no apêndice. Foi durante a recuperação no hospital que acabou contraindo a covid-19. Os sintomas se agravaram, e o caseiro foi intubado no Hospital Universitário de Florianópolis, onde faleceu vítima de um ataque cardíaco.
Os filhos, que ficaram duas semanas sem ver o pai, imaginavam poder dar adeus no velório — mas tiveram de lidar com a dura realidade dos enterros de caixão lacrado das vítimas da covid-19. "Dói não poder ver uma última vez, né?", comentou Gabriela Firmino, 21, ainda tonta pela perda recente.
Lenta corrosão
O enterro silencioso não foi exceção. Tudo no que diz respeito ao ramo funerário tem sido assim. Com o presidente da Abredif (Associação de Empresas e Diretores do Setor Funerário) e da Afub (Associação dos Fabricantes de Urnas do Brasil) preludiando um colapso iminente no setor fúnebre, era de se esperar que os cemitérios e as funerárias estivessem atravessando o caos absoluto. Na verdade, o que se vê é uma corrosão lenta e dolorosa nos serviços prestados.
Eduardo D'ávilla, 40, é gerente da funerária São Pedro, de Florianópolis — a mesma que atendeu à família de Saulo. Ele afirma que o número de casos que atende hoje é alarmante. "O que eu atendia em um mês, agora eu atendo em uma semana." D'ávilla calcula que a média de 40 óbitos por mês passou para a faixa dos 100. "Isso só na minha funerária", ressalta.
Enquanto conversa com o TAB, o gerente caminha pelo interior da loja, passa por uma sala lotada de caixões cheirando a verniz e atravessa para o cômodo contíguo, onde há três urnas ocupadas por corpos a serem preparados pelos tanatopraxistas. D'ávilla aponta para pequenas urnas de tamanho infantil, que, afirma, servem de mostruário. Totalizam sete modelos. "Tive de tirar de lá [a sala ao lado], não tem previsão de produzirem novas." Por causa da pandemia, o acesso a caixões está cada vez mais escasso, com modelos saindo de linha e nada de reposição.
Os corpos que chegam no carro funerário são envoltos em duas camadas de um saco médico, similar ao do IML, e postos na urna assim mesmo, sem qualquer preparo. Esse processo dura no máximo meia hora — e pode ser feito tanto pelos tanatopraxistas quanto pelos agentes funerários, contanto que todos usem o devido EPI: máscara, roupa protetora, luva, mangote e propé.
Os cadáveres devem ser devidamente manuseados para evitar infecção, como explica o coveiro Márcio Campos. Assim, diferente de um cadáver normal, que passa pela tanatopraxia em laboratório, a vítima de covid-19 não passa por qualquer forma de preparo, sendo ensacada desnuda. Embora não seja proibido mexer no cadáver infectado, a prática é altamente contraindicada pelo Ministério da Saúde e pela OMS (Organização Mundial da Saúde). A maioria das funerárias segue a instrução à risca.
Sem a tanatopraxia, o preço do enterro teoricamente diminui, mas, na prática, há outras questões que mantêm o gasto similar: troca-se ornamentação pelos custos com selamento do corpo com os sacos; no traslado, o cadáver tem que ser posto num caixão de alumínio, que estará dentro do caixão de madeira tradicional. Os gastos são intercambiáveis — assim, teoricamente, a funerária estaria lucrando com o aumento expressivo de casos para atender.
Mas há um porém: com a urna fechada, muita gente desconsidera velar o corpo. Por causa disso, coroas de flores e despesas com a capela são dispensadas. O cansaço aumenta, o trabalho aumenta, o salário não sobe, o lucro não muda e a matéria-prima (variações de metal e madeira) vai se tornando escassa.
Para os tanatopraxistas, o trabalho aumentou. Cada vez mais, aparecem mortos que haviam se recuperado do covid-19 há pouco tempo — ou seja, corpos que podem ser manipulados. "Eu mexia com seis corpos num plantão de 12 horas, agora mexo com 10, quase o dobro", conta ao TAB a tanatopraxista Paula Moreira, 35, do laboratório ligado à funerária São Pedro. Ela vê ligação entre o aumento no número de mortos e o fato de boa parte deles serem ex-pacientes de covid-19.
Sem medo e sem esperança
Não há ramo do setor funerário que não esteja sendo afetado. D'ávilla afirma que a empresa já vinha se preparando, mas não previa que teria de lidar com uma movimentação tão extraordinária. Caminhando pela funerária, ele reflete sobre como essa alta demanda eleva o risco de infecção por covid-19 — o que não lhe provoca medo de adoecer.
Parece que tanto ele quanto os outros profissionais (coveiros, agentes e tanatopraxistas) desenvolveram uma relação de intimidade com a morte, a ponto de não temê-la, mesmo em condições extremas como as de agora. "Nos primeiros dias em que fui trabalhar, eu ia rezando pra não ter serviço. A gente lida com diversos tipos de situações, daí perde o medo da morte", explica o gerente. O coveiro Mauro Edson Campos, 60, partilha o mesmo desapego e vai além. "Não tenho medo de pegar covid-19. Tive suspeita por nove dias, fiquei em casa. Se morrer, morri... Quando comecei aqui, em 2002, tinha medo até de pegar em caixão. Hoje encaro tudo com leveza, fiquei até uma pessoa mais respeitosa."
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