Força-tarefa 'recicla' 1.000 covas em cemitério fechado para enterros em SP
Enquanto as equipes de saúde pública correm para abrir vagas em hospitais, os cemitérios correm para abrir valas. Este mundo de cabeça para baixo criado pela pandemia de covid-19 exige medidas difíceis de entender. O cemitério de Vila Nova Cachoeirinha, o segundo maior da cidade de São Paulo, está fechado para balanço.
Sem covas para enterros, a administração montou uma força-tarefa para exumar 1.056 corpos no menor prazo possível. Metidos em uniformes brancos de poliuretano, 11 funcionários circundam sepulturas abertas. Este não é o time completo. Dentro da terra, três homens limpam jazigos com quatro "andares" para caixões, uma profundidade quase igual a altura de duas pessoas.
O serviço de exumação tem dois turnos diferentes. Pela manhã, os funcionários trabalham na retirada de ossos, com o zelo que um restaurador dedicaria às igrejas das cidades históricas de Minas Gerais. Depois do almoço, reina a força bruta. É hora de retirar a sujeira das covas.
Cada buraco tem quatro camadas e comporta oito corpos — dois por "andar". Com tanto serviço, numa tarde três caçambas são enchidas com terra misturada a pedaços da madeira podre dos caixões e roupas que viraram trapos.
Todo este trabalho é feito para permitir que as sepulturas voltem a ser utilizadas, declara o secretário Subprefeituras da cidade de São Paulo, Alexandre Modonezi. Ele explica que a lógica de suspender os enterros no Vila Nova Cachoeirinha precisa ser vista no contexto dos 22 cemitérios do município.
A demanda será absorvida por outras unidades enquanto as exumações liberam covas. Em outras palavras, é uma espécie de reciclagem de sepulturas.
Modonezi acrescenta que, nessa pressão inédita, é avaliada a abertura de duas áreas nunca usadas no cemitério de Itaquera. Como muitas famílias que apelaram para suas economias, o sistema funerário planeja recorrer às suas reservas.
Todo cuidado é pouco
O trabalho de exumação se dá em torno de sacos azuis de plástico, grossos como o jeans. São eles que abrigarão os ossos retirados das sepulturas. O serviço não é considerado difícil pelos funcionários.
A madeira do caixão está tão podre que despedaça logo que é alcançada. A roupa indica a localização do esqueleto. Nessa hora começa a parte minuciosa do serviço. Parte importante do cotidiano do sistema funerário, as exumações em curso têm a peculiaridade de não serem acompanhadas por familiares.
As covas são públicas e, por lei, as ossadas de adultos podem ser removidas depois de três anos. Os parentes que desejam colocar o corpo num ossário individual comunicam a administração do cemitério ao final deste prazo.
As sepulturas incluídas na força-tarefa estão há mais de quatro anos fechadas e nenhum familiar manifestou interesse pelo destino dos ossos. Mesmo com comunicação recente reiterando a exumação, ninguém apareceu.
A situação representa alerta máximo. O destino dos restos mortais, nesses casos, é o ossário geral do cemitério. Haver um familiar reclamando o corpo no futuro e a ossada não ser encontrada seria a maior derrota possível para a equipe do Vila Nova Cachoeirinha.
Para evitar essa segunda tragédia, os sacos azuis têm placas pregadas no lado de dentro e de fora, com informações da pessoa exumada. Nome, data da morte, dia da exumação e localização do jazigo no cemitério estão fáceis de identificar. Um encarregado supervisiona o trabalho das equipes, mas durante o serviço reina a ética constante e o espírito cristão.
Por respeito aos mortos e garantia da consciência limpa, os funcionários respeitam o código não-escrito de cuidado extremo com os restos mortais alheios. Eles trabalham em duplas e, além de cumprir sua função, cada um verifica se o parceiro executa tudo à perfeição. Na aviação, o processo teria o pomposo nome de cross-check, mas no cemitério é o coloquial "faz direito que eu tô de olho".
Trabalho pesado
A remoção dos ossos ocorre de manhã, quando os funcionários estão mais descansados e alertas. A tarde é hora do serviço bruto: limpar o interior das covas que foram exumadas. Um homem armado de uma pá entra na sepultura e enche um balde com terra e restos de caixão, roupas e calçados.
Na alça do balde, há uma corda que é puxada por um funcionário em pé na beira do jazigo, uns 4 metros acima. O entulho vai de carrinho de mão para caçambas. Para dar dimensão da produtividade, em uma tarde foram enchidas três das caçambas. Nesse ritmo, 256 covas foram recicladas desde terça-feira (30).
O trabalho continua nesta Sexta-Feira Santa, sábado e domingo de Páscoa. A intenção da administração é terminar as exumações em 20 dias. Até lá, somente famílias que possuem jazigos privados poderão enterrar seus mortos no cemitério Vila Nova Cachoeirinha. Isso significa um número de sepultamentos muito menor, o que fica claro na distribuição do pessoal.
Há quatro funcionários fazendo os enterros e 14 lidam com as exumações. A tarefa considerada mais pesada no cemitério é realizada vestindo um macacão de poliuretano por cima do uniforme. Impossível não suar.
O administrador do cemitério vai algumas vezes conversar com a equipe ao longo do dia. Munido da mentalidade do gestor que busca atingir metas de final de ano, repassa ordens e incentiva o pessoal. Ele afirmou ao TAB que estava pressionando os funcionários e depois haverá a premiação em forma de folga.
Fazer o trabalho mais pesado do cemitério da maneira mais rápida possível não incomoda a todos. Um integrante declarou que enxerga uma grande vantagem em estar longe dos sepultamentos: a falta de envolvimento emocional.
Ele explicou que, na exumação, lida com ossos. Não fica sabendo a idade, o motivo da morte e, principalmente, o nome da pessoa enterrada. O funcionário revelou que sente gastura toda vez que o morto tem o mesmo nome que ele. Em suas palavras, é um lembrete de que um dia a certidão de óbito terá seus dados. Dizendo que não tem medo de morrer, ele explicou que a morte não é um evento para ser vivido com antecipação.
Maior demanda da história
O sistema funerário de São Paulo experimenta uma pressão nunca vista, nem na primeira onda de covid-19. No ano passado, o recorde foi 262 sepultamentos diários, registrados em 14 de julho. Na última terça-feira (30), ocorreu o maior número de enterros desta onda, 420. Com estatísticas tão altas, março terminou com 9.728 enterros, número 63% maior que os 5.964 de fevereiro.
A situação cada vez mais crítica exigiu respostas contundentes. Além da possível abertura de covas no cemitério de Itaquera numa área jamais usada, houve a contratação de dois contêineres para guardar corpos no crematório de Vila Alpina, declarou o secretário de subprefeituras. A unidade funciona na capacidade máxima de 48 cremações por dia e o total de corpos armazenados antes da incineração foi de 60 para 96 com os contêineres.
Até ontem, 15 vans de transporte escolar adaptadas já estavam atuando no serviço funerário — há 50 contratadas. Modonezi explicou que houve procura por carros de funerárias, mas simplesmente não há veículos à disposição. Antes da pandemia, 30 carros davam conta do serviço. Com a incorporação das vans escolares, serão 95.
O número de sepultadores na cidade também traduz a dimensão do desafio. Eram 76 funcionários antes da covid-19, hoje são 300. "O serviço funerário vive hoje a maior demanda de sua história", declarou.
Modonezi reforça o compromisso em não acontecer enterros em valas coletivas em São Paulo e implora para as pessoas ficarem em casa. Ele vê um fio de esperança nas estatísticas recentes do sistema de saúde, mas ressalta que os efeitos de qualquer melhora demoram a serem sentidos nos cemitérios.
"A saúde começa a apresentar indicadores de estabilidade. Se a estabilidade se mantiver, esperamos que essa queda seja sentida no sistema funerário entre 15, 20 dias depois."
Nos filmes, a frase "o fim está próximo" sempre foi profecia do apocalipse. Agora, a frase ganhou novo significado, virou desejo. A pandemia voltou a virar as coisas de cabeça para baixo.
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