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A dança de Atafona (RJ): a cidade que se move conforme o mar avança

Um dos pontos mais críticos de erosão em Atafona (RJ): o fenômeno produziu imagens impressionantes - Mariana Costa/UOL
Um dos pontos mais críticos de erosão em Atafona (RJ): o fenômeno produziu imagens impressionantes
Imagem: Mariana Costa/UOL

Mariana Costa

Colaboração para o TAB, de Atafona (RJ)

28/03/2021 04h01

Atafona ainda acordava naquela manhã de quinta-feira quando, pelas ruas, um grupo de produtores culturais anunciava "olha o museu no meio da praça!". Fotografias antigas dispostas em caixotes sobre uma bicicleta passeavam pelo bucólico distrito em São João da Barra, extremo norte do estado do Rio de Janeiro. As pessoas foram chegando aos poucos. Muitos se emocionaram.

Memória é tema sensível por ali. Há 70 anos o distrito de 6.779 habitantes vem perdendo seu território para o mar. Um violento processo de erosão marinha já engoliu oito quarteirões e cerca de 500 edificações, entre casas, comércios, um posto de gasolina e até um edifício de quatro andares. O museu ambulante foi produzido pela Casa Duna, um centro de arte e pesquisa que busca guardar algo desse passado.

O mar levou o cenário da história e o modo de viver de muita gente. O fenômeno é acompanhado por especialistas de diversas áreas, no Brasil e no mundo. É resultado de uma combinação de fatores ambientais e da ação humana, e está relacionado à degradação do rio Paraíba do Sul. Suas águas percorrem mais de mil quilômetros antes de desaguar no mar de Atafona. Represamentos, desvios e o desmatamento das margens reduziram a vazão, o rio perdeu força e deixou de "segurar" o mar em sua foz. É naquele canto esquecido do mapa que a natureza cobra o preço da exploração predatória de um dos rios mais importantes do Brasil.

As imagens de destruição produzem cenas impressionantes, mas elas também escondem o esforço de uma Atafona que segue em constante movimento. Conforme o mar avança, a população vai caminhando para trás e para os lados, em uma coreografia dramática, um tango entre as águas e os moradores.

Museu ambulante, montado em uma bicicleta, 'percorre' as ruas de Atafona (RJ) com fotos antigas da cidade - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Museu ambulante, montado em uma bicicleta, 'percorre' as ruas de Atafona (RJ) com fotos antigas da cidade
Imagem: Mariana Costa/UOL
Um dos pontos mais críticos de erosão em Atafona (RJ): o fenômeno produziu imagens impressionantes - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Imagem: Mariana Costa/UOL

Meu muro caiu

Sônia Ferreira, 76, viveu os tempos áureos de Atafona, quando o balneário era o destino de verão da classe média e alta de Campos dos Goytacazes. Há cerca de vinte anos, resolveu se mudar definitivamente para a casa de veraneio da família.

A casa de dois pavimentos e quatro suítes, construída em pedra, madeira e vidro, ficava a duas quadras da praia. "Na frente de casa tinha ponto de ônibus, banca de jornal, supermercado. Eram dois quarteirões até a praia e ainda tinha a Avenida Atlântica, o calçadão e uma imensa faixa de areia. A gente caminhava muito até chegar no mar. Hoje está assim", resigna-se.

Sônia Ferreira e a foto do antigo prédio, na época já prestes a desabar - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Sônia Ferreira e a foto do antigo prédio, na época já prestes a desabar
Imagem: Mariana Costa/UOL

Da varanda, Sônia viu o mar pouco a pouco fazer ruir as estruturas, até derrubar um prédio inteiro que ficava bem na frente de sua casa. Ela guarda as imagens em um álbum de fotografia, em ordem cronológica, junto a recortes de jornal. Em 2019, seu muro desabou. "Meu filho queria que eu saísse. Comecei a procurar outro lugar, mas meu coração se angustiava. Não queria sair. Resolvi mudar para a casa do caseiro, que fica nos fundos do terreno. Fico por lá e vou mantendo a casa. Desocupando aos pouquinhos", conta.

O alívio para a saudade vem de um senso de união e um forte vínculo afetivo com o lugar. "Temos um colo coletivo. As pessoas são muito fraternas e solidárias. Não me sinto sozinha. Não posso afirmar que [o mar] vai chegar, mas é o processo, né? Não quero sair. Estou satisfeita e feliz."

A bicicleta, transformada em museu ambulante, percorreu ruas e praças de Atafona (RJ) - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Imagem: Mariana Costa/UOL
Construída em 1980, a casa de Sônia Ferreira, em Atafona (RJ), ficava e duas quadras da praia e hoje vê o mar se aproximar a cada ano - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Construída em 1980, a casa de Sônia Ferreira, em Atafona (RJ), ficava e duas quadras da praia e hoje vê o mar se aproximar a cada ano
Imagem: Mariana Costa/UOL

Lembranças dos tempos áureos

Há cerca de dois anos, o que todos temiam aconteceu: sem forças, o pontal formado pelo encontro das águas do rio com o oceano se fechou. Um extenso banco de areia formou-se na antiga foz. "O rio era caudaloso, a calha central era imponente. A gente via tainha, boto, tartaruga. Hoje acabou tudo. Isso dá uma tristeza muito grande", observa Eleilton Ribeiro Meireles, 63, antigo morador da Ilha da Convivência, um dos primeiros lugares atingidos pela erosão, ainda nos anos de 1970.

Nascido em uma família de pescadores, deixou a ilha aos 22 anos e foi morar no continente, isso em 1978. "Alugamos uma casa, mas o mar levou antes de a gente mudar. Tiramos o material e reformamos outra casa. O pescador precisa ficar perto da água, seja do leito do rio ou do mar", afirma.

A família foi recuando, um tio mudou-se para Macaé. Eleilton ficou. Diz que a cidade tem uma atmosfera mágica, uma coisa inexplicável. Restaram lembranças do circo, dos bailes de carnaval, das praias, das quitandas e lojas, e o saudosismo dos tempos áureos de quando a região liderava a produção de peixes do estado.

Em oposição ao cenário de destruição da costa, Atafona mantém um bem conservado casario de arquitetura eclética. O declínio causado pela erosão parece ter poupado o distrito da especulação imobiliária que atinge outras cidades da Região dos Lagos. Atafona tem um clima de glamour decadente e a atmosfera bucólica de uma vila pesqueira.

Foi o amor por Atafona e seus modos de vida que levaram a comerciante Miri Carla, 47, a resistir. Da família, restou apenas ela por lá. "Não troco por nenhum lugar do mundo. Não saio nem para visitar os parentes, eles vêm pra cá me ver. Quem bebe a água de Atafona fica maravilhado e não quer ir embora."

Da canoa que leva seu nome, ela aponta para o mar, na direção onde o pai tinha uma peixaria. A família perdeu o comércio nos anos de 1990. Foram tempos difíceis. "O mar veio numa velocidade inexplicável. São oito quarteirões debaixo d'água", observa.

Miri está entre os que acreditam que o mar está tomando de volta aquilo que já foi dele. É cética quanto à eficácia da construção de um quebra-mar. Sua maior tristeza foi o fim do pontal, algo inimaginável para quem cresceu vendo a força do rio desaguar no oceano.

Moradora de Atafona (RJ), Miri Carla sente saudade do antigo pontal: sem forças, o rio buscou outro caminho para desaguar no oceano - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Moradora de Atafona (RJ), Miri Carla sente saudade do antigo pontal: sem forças, o rio buscou outro caminho para desaguar no oceano
Imagem: Mariana Costa/UOL
Eleilton Ribeiro Meireles tinha 22 anos quando teve que deixar a Ilha Convivência, primeiro ponto a ser atingido pela erosão em Atafona (RJ) - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Eleilton Ribeiro Meireles tinha 22 anos quando teve que deixar a Ilha Convivência, primeiro ponto a ser atingido pela erosão em Atafona (RJ)
Imagem: Mariana Costa/UOL

Impermanência e resistência

Viver em um espaço em constante transformação parece ter criado nos moradores de Atafona uma percepção muito concreta do tempo presente. Miri vive o hoje, não sabe o dia de amanhã.

Mas a vida em meio à impermanência pode assumir contornos mais dramáticos, como no caso de Paulinho Eletricista, 67. Sob um calor de 35°C, ele garimpava canos no que um dia foi a piscina de um clube. Como muitos moradores, vive de cuidar das casas prestes a ruir, em troca de moradia. Conforme o mar avança, Paulinho, a esposa e os filhos vão recuando e buscando outras casas. "Vivemos assim, em beira de praia e área de risco."

A família já se mudou dez vezes. Passou uma temporada em Campos, mas não se adaptou à cidade grande. Ele aponta para duas caixas d'águas parcialmente submersas que pertenciam a um bar que ele mesmo reformou.

Quase nada foi feito pelo poder público para socorrer os moradores vulneráveis e os mais afetados pela erosão, em uma situação que se arrasta há 70 anos. Três projetos estão em discussão para tentar amenizar o problema. Nenhum saiu do papel. Recursos não faltam: Atafona é beneficiária dos royalties do petróleo. São João da Barra também é sede do Porto do Açu, um complexo construído em 2014 para escoar a produção das bacias próximas.

Segundo a prefeitura da cidade, os projetos estão sendo analisados pelo Ministério Público Federal. Um é do INPH (Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias). Outro é de especialistas do Espírito Santo. Ambos preveem a construção de espigões para contenção. A terceira proposta, da UFF (Universidade Federal Fluminense), sugere o engordamento da praia, com sucção de areia do rio e do mar. Segundo a nota enviada ao TAB, "quanto às famílias afetadas pela erosão, na década de 1980 o governo estadual construiu um conjunto habitacional pela Cehab para as famílias de pescadores, na maior parte da Ilha de Convivência. Hoje, o número de famílias em área de risco é menor. A prefeitura providencia ainda um esquema de aluguel social."

Um misto de revolta, resignação e descrença aparece com força no discurso de muitos moradores. "Aqui já veio cientista, ambientalista, engenheiro e não adiantou nada, nada foi feito. É muito descaso", reflete Paulinho.

Morador de Atafona (RJ), Paulinho vive de cuidar de casas prestes a cair e do garimpo de materiais nos escombros - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Morador de Atafona (RJ), Paulinho vive de cuidar de casas prestes a cair e do garimpo de materiais nos escombros
Imagem: Mariana Costa/UOL
Nina Gonçalves vive no que restou de uma casa e luta diariamente contra a areia que cerca  o terreno, em Atafona (RJ) - Mariana Costa/UOL - Mariana Costa/UOL
Nina Gonçalves vive no que restou de uma casa e luta diariamente contra a areia que cerca o terreno, em Atafona (RJ)
Imagem: Mariana Costa/UOL

O sol ensaiava seus últimos raios quando Nina Gonçalves, 57, retirava com uma pá a areia que se acumulava na frente do que restou de uma casa à beira-mar. Há seis anos ali, Nina ficou meses tirando areia da duna que cobre a lateral do terreno e insiste em entrar na casa. Uma luta diária e inglória, espécie de concretização do mito de Sísifo, condenado a rolar uma rocha até o alto da montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso.

Nina, mulher trans, vive sozinha com um gato e dois cachorros. Morava em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, mas há 12 anos resolveu voltar para a região onde nasceu. "Não sinto saudade. Pode me oferecer casa, apartamento que eu não volto", afirma. Os meses mais difíceis são agosto e setembro, quando ela tem que vedar as janelas com plástico. "Quando o vento muda, tudo muda. É a natureza."

Se na mitologia grega não há castigo pior que o trabalho inútil, no caso de Nina a luta contra o vento e a areia trouxe a possibilidade de ter um lar e a paz que buscou e não encontrou em outros lugares. Não teme os riscos de viver a poucos metros do mar. "Tenho mais medo dos vivos. Vivo em paz. Vivo um dia de cada vez. O futuro, só Deus sabe."