Lambe-lambes de Feira de Santana resistem à mudança para dentro de shopping
Especialistas em retratos 3x4 e imagens de momentos em família, fotógrafos de rua quebravam o galho daqueles que necessitavam de fotografias instantâneas numa época em que as câmeras eram artigo raro. Hoje, estes profissionais tentam sobreviver num mundo em que selfies enchem as memórias dos telefones celulares.
Em Feira de Santana, segunda maior cidade da Bahia, o retratista José Alves e seus colegas enfrentam dificuldades na praça em que trabalham há décadas. Alves, 68, é um dos mais antigos lambe-lambes em Feira de Santana. Está no ramo desde 1973 e viu o poder público investir contra os quiosques dos retratistas locais. A mais recente das propostas está inserida num projeto de reestruturação do centro da cidade, promovido pela prefeitura, e consiste na remoção das barracas da Praça Bernardino Bahia e o deslocamento desses profissionais para um shopping popular nas cercanias do centro de abastecimento, a cerca de 1 km dali.
Parte dos lambe-lambes era contrária ao projeto. Outra parcela era favorável - esperavam que, com a transferência, seu trabalho pudesse ganhar novo fôlego. A falta de consenso fez com que os desejosos pela mudança entrassem em acordo com a prefeitura e levassem seus pertences para os novos boxes. A contragosto, impelido pelo fechamento das entradas principais da praça com tapumes e pela saída de parte de seus colegas, José Alves aceitou se mudar.
A troca não deu certo para José nem para ninguém. Quando o shopping foi inaugurado, em setembro de 2020, eles descobriram que a estrutura dos novos quiosques era voltada aos camelôs, também transferidos. Os fotógrafos também passaram a se queixar do aluguel dos espaços, que consideram elevada para o seu ofício. "Lá não serve para fotografia. Nós somos fotógrafos, não ambulantes", reclama Alves. Vários dos profissionais se desfizeram dos boxes, retornaram à praça ou mudaram de ramo. Os três remanescentes tentam alugá-los ou vendê-los.
Na prática, a malfadada mudança pode ter o efeito de tiro de misericórdia no já combalido ofício dos fotógrafos de rua.
Praça da foto
O lambe-lambe tem uma relação duradoura com Feira de Santana. Entre meados das décadas de 1950 e 1960, a "Princesa do Sertão" começou a se desenvolver a partir da construção de rodovias federais, o que possibilitou que pessoas de outras partes da Bahia e dos demais estados do Nordeste aportassem na cidade para trabalharem no comércio e no setor agropecuário. Com isso, cresceu a necessidade de fotos para currículos, documentos e crachás, prato cheio para os "lambes".
Acredita-se que os lambe-lambes se instalaram no início dos anos 1960, bem no no coração da cidade, nos arredores da movimentada feira livre que acontecia semanalmente entre o Mercado Municipal, a Igreja Senhor dos Passos e a prefeitura. O jardim da praça Bernardino Bahia, nos fundos do grande armazém, foi o local escolhido. A antiga área nobre servira de residência a influentes coronéis de Feira de Santana (como o intendente Bernardino Bahia, que, em 1915, construiu o coreto que dá nome ao largo) e, a partir daquele momento, passaria a ser conhecida não mais como berço da aristocracia, mas por ser o lugar da esperança de trabalhadores de origem popular.
José Alves permaneceu na praça por 47 anos, até aceitar a proposta de mudança para o shopping popular e aposentar seu box, que deixa guardado no quintal de casa, a cerca de 3,5 km do seu antigo local de trabalho. Hoje em dia, volta ao centro só para rever os amigos. No trajeto, com sua pesada câmera Zeiss Ikon Nettar 515/2, acoplada a uma caixa que serve de laboratório instantâneo e a um tripé de madeira, o fotógrafo vai driblando camelôs, feirantes e transeuntes enquanto conta sua história.
Ao passar pelo Mercado Municipal, o veterano aproveita para fazer uma provocação. "Pergunte a qualquer feirense qual é o nome do largo. A maioria vai dizer que se chama Praça do Lambe-Lambe", argumenta, enquanto se esgueira pelos becos com o objeto quase centenário, produzido durante a década de 1930. De certa forma, o Google Maps confirma a versão do fotógrafo: uma busca pelo termo é oferecida como sugestão de pesquisa e leva o usuário que aceita a dica ao endereço correto.
No centro do largo, ao lado do coreto, Alves encontra José Carlos Assis, 67, proprietário da barraca de número 10. Assis foi um dos fotógrafos que não aceitaram selar acordo com a prefeitura. Ele segue trabalhando irregularmente na praça - onde chegou junto com o amigo, em 1973. O movimento, que já não era grande, diminuiu por conta das obras na região.
A manhã de trabalho pouco produtiva de Carlos termina quando uma cliente antiga aparece para fazer uma 3x4 para um crachá. Enquanto fotografa a moça, Assis se dirige a ela e ao outro decano da praça com uma queixa. "Aqui é o lugar em que a fotografia começou a se popularizar em Feira. Tirando as nossas barracas, não sobra nada. Até as árvores fomos nós que plantamos. Esse lugar sempre foi cuidado pelos lambe-lambes", afirma.
De vaqueiro a retratista
Quando José Alves era menino, a Praça Bernardino Bahia não tinha o sombreado que, hoje, apazigua o calor e abriga feirantes, garis e flanelinhas que usam os bancos do local para descansarem ou saborearem suas marmitas. Nos finais de semana da década de 1960, o garoto deixava a fazenda em que morava, no distrito de Jaguara, para ir à feira livre com o pai, vaqueiro da propriedade. O fim de linha dos caminhões pau-de-arara vindos da zona rural era o largo, já tomado pelos lambe-lambes e seus caixotes.
José seguiu os passos do pai e se tornou vaqueiro. Mas, em 1973, quando foi fazer a 3x4 obrigatória para o alistamento militar, encantou-se pela mágica que acontecia quando a luz penetrava as lentes. Ficou curioso pelo hábito dos antigos fotógrafos, que passavam a língua num dos lados da lâmina revestida com a emulsão fotossensível, que servia para dar vida às imagens — e que, diz-se, fez o ofício ser conhecido como lambe-lambe.
De pronto, pediu para o fotógrafo lhe mostrar como funcionava aquele novo mundo e decidiu comprar uma câmera. Dias depois, com as economias que guardava debaixo do travesseiro, chegou à praça e comprou seu equipamento. Autodidata, queimou alguns filmes até dominar os mecanismos da profissão e "estrear", tirando uma foto do pai ordenhando uma vaca no curral.
O negativo e a impressão da foto do velho vaqueiro se perderam no tempo, como uma metáfora para o ofício. No auge da fotografia analógica, 36 lambe-lambes ocupavam a praça e não faltava trabalho: na época das matrículas escolares, havia fotógrafos que consumiam até 12 rolos de filmes com 12 poses - que, após todos os processos de edição, produzia de 20 a 30 fotos finalizadas.
Alves fez seu nome e ganhou espaço em veículos de imprensa da região - onde também atuou com fotografia digital. Também conseguiu criar quatro filhos e comprar uma casa. O esforço foi reconhecido pelos mais moços, Gean e Jaitan Almeida, que, em 2020, roteirizaram e dirigiram o documentário "O Retratista", com o pai de protagonista.
Com a popularização dos celulares com câmeras, a quantidade de fotógrafos na praça foi minguando. Há oito anos, restavam cerca de 20 lambe-lambes, que - dependendo do quão próximos estavam dos portões do largo, onde havia mais movimento - faziam de três a 10 retratos por dia, a R$ 10 cada. Hoje, na tentativa de complementar a renda, apenas cinco proprietários dos quiosques aparecem com frequência no local.
Ainda assim, o lambe-lambe continua a despertar a curiosidade dos mais novos. Sempre que carrega a sua antiga câmera pelas ruas de Feira de Santana, José Alves é parado por pessoas que se chocam pelo fato de aquele trambolho poder registrar imagens de forma tão eficaz. Nos olhos brilhantes e nas expressões maravilhadas daqueles que pedem para que o retratista mostre como trabalhava antigamente, Alves parece enxergar o seu reflexo no espelho.
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