Doces bárbaras: a amizade das covers de Gal e Bethânia na noite recifense
Na última sexta-feira de fevereiro, Gal foi comemorar seu aniversário de 60 anos num bar do centro de Recife. Vinha cintilante entre as pessoas no frenesi de fim de expediente, em plena avenida Conde da Boa Vista, principal corredor de ônibus da região de comércio da cidade. De cabelos soltos, roupa preta — brilhosa e transparente — máscara no rosto e duas garrafas de espumante na mão, ela chegou antes mesmo dos convidados. Era uma noite especial, porque também completava quatro décadas de carreira.
O bar escolhido para a comemoração não tinha nada de Tropicália nem sequer tocava MPB. Enquanto os garçons instalavam a televisão para exibir a apresentação da aniversariante, a música ambiente era "Used to Love Her", do Guns N'Roses. Mais ao gosto dela, que prefere "coisas diferentes".
Às 20h Gal estrearia um show na internet, e por isso reuniu os amigos para assistir ao vídeo como parte das celebrações. Por causa da pandemia, a lista de convidados precisou ser reduzida. Estavam ali somente as pessoas mais próximas e parte da equipe envolvida na gravação. Entre elas, Maria Bethânia.
Meu Nome É Gal
Gal é um alter ego de Sharlene Esse, atriz pernambucana que nasceu no interior do estado e se mudou ainda adolescente para Olinda, Região Metropolitana de Recife, em 1975. Sharlene — naquela época "um menino afeminado, com medo de andar na rua sozinho por causa da ditadura (o regime militar estava no fim)" — foi morar com a avó e uma tia enquanto se preparava para o vestibular. Entrou na universidade de jornalismo, mas trocou o curso pela carreira artística.
Sharlene nasceu num palco, ou melhor, num casarão de teatro. Depois de tantas vezes passando em frente à sede do grupo Vivencial — coletivo performático que apresentava esquetes e paródias ácidas na época da contracultura —, criou coragem para entrar. Ali se encontrou, e depois também passou a fazer shows na noite recifense.
Numa dessas noites, pronta para dublar Donna Summer na extinta boate Misty, então reduto de liberdades sexuais dos recifenses, Sharlene ouviu de um amigo maquiador que ela tinha tudo para imitar Gal Costa. "Disse que eu tinha a testa expressiva e parecia com ela", lembra.
"Gal Tropical", o décimo terceiro disco da baiana, tinha sido lançado três anos antes. Foi nele que Sharlene pegou carona. A atriz incorporou ao figurino o vestido vermelho e as flores no cabelo usados pela cantora na fotografia da capa do álbum, e ensaiou as músicas que passaram a fazer parte de seu repertório.
Gal se transformou no papel mais conhecido de Sharlene, entre outras personagens que ela interpreta, como o da atriz Marília Pêra.
Mensagem
"Cadê a senhora?", perguntava Gal a Bethânia, por telefone, enquanto os outros convidados chegavam no bar. Do outro lado da linha, na verdade, estava o ator, maquiador e figurinista Odilex Lins, 58, cover de Maria Bethânia desde 1981, que apareceu logo em seguida.
O corpo esguio e o nariz saliente levaram Odilex à sua maior personagem. Depois de dublar Ney Matogrosso nas boates gays recifenses, ele assumiu de vez a figura de Bethânia, com quem frequentemente era comparado pelas pessoas. Odilex tem até o jeito mais recluso da cantora. Quando chegou ao bar, quietinho, sentou-se logo à mesa da anfitriã. "Algumas pessoas até me chamam de chato porque sou introspectivo, mas é que gosto muito de analisar os lugares e as pessoas quando eu chego", explicou. "Mas se passar meia hora conversando comigo vai ouvir muita putaria", brincou.
Odilex e Sharlene pertencem a uma geração de transformistas, como são chamados em Pernambuco, que teve seu auge justamente no período entre o fim da ditadura militar e a reabertura política do país. Eram pessoas que se dividiam entre o teatro e as boates, desfazendo os limites entre o palco e a pista de dança.
"Vivíamos um momento de repressão geral. Tinha essa coisa da família, a sociedade e a própria política em si, que reprimiam tudo que não fosse aos moldes deles", lembra Odilex. As boates eram as licenças onde "os meninos entravam com suas mochilas, e lá dentro se transformavam em grandes e lindas mulheres, em números maravilhosos". O importante era o glamour, que até os héteros iam assistir, diz o ator.
A primeira vez que as doces bárbaras recifenses se encontraram no mesmo palco foi nos anos 1990, na também extinta boate Mangueirão, no centro, onde passaram a se apresentar juntas.
Com o fechamento da maioria das boates gays de Recife, as apresentações fixas sobreviveram basicamente no vapor das saunas da cidade. E é neste espaço que Gal e Bethânia disputam a atenção entre os flertes despudorados na plateia. "A apresentação é a pausa do energético", brinca Sharlene. Além disso, também se apresentam em festas corporativas, aniversários e eventos particulares.
Vaca Profana
Quando a transmissão do vídeo de Sharlene começou, pontualmente, ela já estava a postos sentada à mesa, com uma taça de espumante para acompanhar. Odilex sentou ao lado para assistir. O espetáculo gravado se chamava "É Tudo Verdade", com um roteiro que intercala músicas e pequenos textos sobre a vida da atriz — declamados por ela mesma.
"Diz que a primeira dama trans do teatro pernambucano está no ar", gritou, logo na primeira aparição, enquanto emendava com dublagem de "Vaca Profana". Sharlene explicou a celebração e, em seguida, relembrou frases e situações de humilhação que sofreu na infância — todas homofóbicas.
No pequeno palco contornado por galhos secos e, ao fundo, uma cortina, passaram, além de Gal, outras convidadas. O encontro das divas da MPB, o ápice da noite, foi somente na metade da apresentação. Cantaram juntas "Filosofia Pura", uma música em que as baianas falam de aprendizados e ensinamentos da vida. Odilex ainda fez dois solos, e saiu saltitante com dedo em riste, como Bethânia.
No bar, elas faziam comentários sobre os closes e as performances das amigas. Assim se passaram 40 minutos de show.
Já mais perto do fim, Gal chorou, ao citar uma lista de pessoas, todos artistas contemporâneos dela, com as quais já trabalhou e que já morreram. "Você vai lembrando certas coisas, o coração se aperta. Não sei se amanhã serei eu ou outra pessoa mais próxima, a morte é uma surpresa", confessou depois. Bethânia a consolou com um abraço.
"É muita resistência", disse Odilex. "Porque nós conseguimos abrir portas para outros artistas. Então assistir junto com Sha é reviver muita coisa. Nós somos os únicos artistas [da geração] a estar na ativa ainda e fazendo coisas lindas."
O centro da cidade já estava bem mais calmo quando o show acabou. Os convidados aplaudiram a aniversariante, e ela abriu mais um espumante para se servir e festejar.
Bethânia não demorou. Se despediu da amiga e foi embora para casa. "Achei muito massa, porque conseguiu captar a essência da coisa teatral. Eu estou assistindo a muita coisa aqui em Recife, e fico horrorizado com a falta de profissionalismo de algumas lives. E o diretor conseguiu levar a essência da noite, do teatro. E se tivesse sido no teatro, com o rudimento, tinha acabado com qualquer live", comentou. "Mas a internet não é igual ao show presencial, faltam os culetes das bichas, que gritam 'arrasou' — isso é um incentivo para a gente."
Gal seguiu a confraternização com os amigos, mas foi logo explicando que não poderia ficar muito tempo mais ali, pois ainda tinha compromisso. "Meu companheiro preparou um aniversário-surpresa em casa, preciso ir." Sharlene já prepara novos shows. Em breve, estreia um espetáculo dedicado exclusivamente a Gal, e, ainda, outro, sobre Elizeth Cardoso.
Recife tem esses fascínios. Não é todo dia que você encontra Gal e Bethânia juntas, num bar de rock em pleno centro.
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