O frei 'carpe diem': padre celebra missa e faz festas em bairro de Salvador
O bairro de Santo Antônio Além do Carmo lembra uma cidadezinha pacata. Nada a ver com o agito do Pelourinho, ali ao lado. O silêncio só é perturbado pelos passos de poucos transeuntes, raros apitos de flanelinhas e latidos de cachorros de rua. Um cenário muito diferente de quando, nas noites de verão pré-pandêmicas, o pátio do santuário local se transformava em um dos pontos mais agitados do fervo soteropolitano — tudo obra de um religioso, frei Ronaldo Marques.
Pároco desde 2002, o pernambucano de 60 anos virou figura ilustre do entretenimento local em meados de 2004, quando decidiu, junto do Conselho Paroquial, reformar os fundos da igreja e, ali, realizar eventos para reunir a comunidade, sob um calendário de festejos que não ficasse restrito à famosa Trezena de Santo Antônio. A ideia era arrecadar fundos para a manutenção dos 10 templos pertencentes à paróquia.
Frei Ronaldo produzia cerimônias pequenas, mas o sucesso da "Feijoada do Padre", que já chegou a reunir 3.500 pessoas, alavancou suas intenções. A partir de 2012, o espaço, que comporta cerca de 500 pessoas, passou a receber rodas de samba do Grupo Botequim na última sexta-feira do mês, além dos ensaios do bloco De Hoje a Oito e do pré-Carnaval da banda Bailinho de Quinta. Também já abrigou shows da cantora Mariene de Castro e das bandas Filhos de Jorge e Estakazero.
O padre produtor também participava de todos os shows — e está na expectativa de retomada após a imunização dos brasileiros contra a covid-19. Desde que chegou a Salvador, frei Ronaldo fez questão de avisar aos paroquianos que gostava de festa, de dançar e de tomar cerveja. "Não se escandalizem se me virem entrando num barzinho e pedindo uma dose de cachaça", advertia.
Sagrado e profano
O consumo de bebidas alcoólicas por parte dos sacerdotes não é proibido pela Igreja Católica. Algumas das melhores cervejas do mundo, por exemplo, foram (e são) produzidas por monges trapistas em países estrangeiros. Frei Ronaldo teve o prazer de provar algumas num convento, durante uma viagem eclesiástica à Bélgica, mas prefere a experiência de beber com amigos no boteco da rezadeira Anália, no Largo do Santo Antônio. "Vou até mandar botar uma placa [numa das mesas]: reservado para o padre", brinca.
Oficialmente, o bar de Anália se chama Que Beleza — mesmo nome do grupo carnavalesco criado pelo frade e por seus paroquianos mais próximos. Enquanto tomava cerveja e almoçava a feijoada feita pela amiga, no domingo que antecedia o Carnaval, Frei Ronaldo lamentava. "Se não fosse a pandemia, hoje sairia o nosso bloco. E, ontem, o De Hoje a Oito. Seria uma folia nesse Santo Antônio."
O frade não esconde de ninguém que o Carnaval é a sua festa preferida. "Se alguém sair batendo lata, eu vou atrás. Se deixar, quero amanhecer o dia brincando", diz, entusiasmado. O sacerdote também costuma passar a folia momesca em Pesqueira, onde nasceu e foi criado ao som do frevo e de sambistas como Cartola, Dona Ivone Lara e Dalva de Oliveira — que, a julgar pela grande coleção de CDs que mantém em sua casa, na Rua dos Carvões, continuam embalando suas horas vagas. Na cidade do agreste pernambucano, a 215 km de Recife, o sacerdote fundou o bloco Amigos do Frei, em 2008. Enquanto exibe o abadá amarelo do cortejo, o padre lembra das vezes em que, mesmo de ressaca, viajou para levar alegria a seu município natal. "Aí era só descansar, tomar mais uma cerveja e ficar pronto pra outra."
Jesus, alegria dos homens
Nas missas, o frei interage com os fiéis e chama alguns pelo nome; nas ruas do bairro, está sempre acenando para alguém, como se fosse uma celebridade. É respeitado também por aqueles que não frequentam a igreja e tem amizade com moradores de rua, homossexuais e mães de santo.
Por outro lado, existem também alguns poucos que torcem o nariz para os costumes do padre e para os efeitos colaterais dos eventos que produz - como trânsito e barulho. Frei Ronaldo, no entanto, tira estes conflitos de letra: negocia para que as festas não se estendam noite adentro, relembra na eucaristia passagens da Bíblia em que Jesus Cristo participou de festividades ou as promoveu, e, através de suas ações, mostra aos fiéis que a rigidez atribuída a sacerdotes já caducou faz tempo. "Para aqueles que só olham pelo lado do pecado, eu sou um grande pecador, graças a Deus", brinca.
Frei Ronaldo é membro da Ordem dos Pregadores, uma das que mais contribuiu para a modernização da Igreja Católica da década de 1960. A assembleia produziu ritos mais acessíveis e aproximou os padres das comunidades paroquiais através das funções pastorais que o frade pernambucano procura desenvolver diariamente, com ou sem a batina — e até mesmo na mesa de bar. Naquela tarde sossegada em que lamentava o cancelamento do Carnaval, por exemplo, o pároco revisava com auxiliares uma carta a ser enviada aos fiéis enquanto sorvia, com parcimônia, a sua cervejinha dominical.
A missiva encorajava os paroquianos a efetuarem doações para o restauro do telhado da Igreja de Santo Antônio Além do Carmo, orçado em R$ 600 mil. O santuário, construído no início do século 19, foi o local em que Santa Dulce dos Pobres foi batizada e fez a sua primeira comunhão. Mesmo com tanta história, sua cobertura não foi perdoada por intempéries, cupins e fezes dos pombos. Por causa do mau estado do teto, o templo acabou sendo interditado após ação do Ministério Público Federal. Frei Ronaldo estima que uma reforma completa do edifício custaria entre R$ 5 e 6 milhões. Por isso, os recursos arrecadados pelos eventos no pátio que fica nos fundos da igreja são tão importantes — e, atualmente, fazem falta à paróquia.
Frei Ronaldo não é do tipo que gosta de se preocupar em demasia com os problemas: é do time carpe diem. Para o frade, a felicidade é a própria graça da vida. E ela pode ser mais bem vivida se forem colocados em prática os ensinamentos de Santo Antônio, para quem a alegria consistia em servir aos mais necessitados. "Deveria ser a meta de todo mundo. Tem coisa melhor do que isso? A vida é tão curta que, se a gente não aproveitá-la, morre até de cara feia. Pra morrer bem, precisa ter vivido bem."
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