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Hierarquia rígida, greves proibidas: a origem da Polícia Militar no Brasil

Cara da PM - Vinícius Cordeiro/Énois Inteligência Jovem
Cara da PM
Imagem: Vinícius Cordeiro/Énois Inteligência Jovem

Letícia Naísa

Do TAB

27/06/2020 04h00Atualizada em 26/11/2020 07h34

Muita gente já se dedicou a explicar a formação dos Estados e suas instituições. Inúmeros filósofos, historiadores e cientistas sociais formularam teorias que justificam nossa ordem social e a existência de corporações que controlam corpos e ações para a vida em harmonia.

Uma das corporações de papel importante nessa ordem social é a de segurança. Não existem Estados sem polícias e, no Brasil, não seria diferente. Nosso país, no entanto, tem uma relação diferente com a força policial: ela mete medo. Segundo pesquisa do Datafolha divulgada em abril de 2019, 51% dos brasileiros têm mais medo do que confiança na PM (Polícia Militar). Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que as mortes decorrentes de intervenções de policiais militares somaram 3.446 em 2018.

Como tudo começou? A história da polícia no Brasil começa com a chegada da família real portuguesa no país, em 1808. Naquele momento, Dom João trazia em sua comitiva uma Guarda Real de Polícia — que seria o embrião das corporações policiais do país. Com o aumento da população e da criminalidade em outras províncias para além da capital, os corpos policiais foram levados para outras partes do país. Em São Paulo, ganhou o nome de Força Pública do Estado de São Paulo com a proclamação da República — nome que se manteve até o golpe de 1964. Em 1891, foi criado o Batalhão Tobias de Aguiar, que, 79 anos depois, em 1970, passa a se denominar Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar).

E sempre foi uma instituição militar? Sim, porque, como tudo no Brasil colonial (e até hoje), foi um modelo de polícia importado, inspirado nas instituições europeias da época. No início do século 20, em 1906, a militarização da polícia de São Paulo, principalmente, foi feita de forma profissional quando aconteceu uma missão francesa no estado. "Foi uma tentativa de modernização da força policial. O exército francês veio pra cá e ajudou a organizar a polícia, dando treinamentos e introduzindo conceitos de disciplina e treinamentos militares", explica Viviane Cubas, pesquisadora do NEV/USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo).

Para que servia a polícia? Até a ditadura, as forças militares serviam para proteger o Estado. O policiamento de rua era feito por corporações não militarizadas. "Até o golpe, ela era utilizada em momentos específicos, como em manifestações e greves. As ações do cotidiano eram feitas por forças menores e civis", diz Cubas. "O governo federal foi quem passou essa atividade de policiamento ostensivo à Força Pública. A partir daquele momento, os militares estavam responsáveis pela atividade de policiamento. O governo militar extinguiu a guarda civil, os membros foram incorporados à Força Pública e isso deu origem à PM." O nome "Polícia Militar" surgiu em 1969 — e ela passou a fazer o chamado "policiamento ostensivo", enquanto a guarda de rua era feita pelos chamados "praças".

Mas é assim em todo lugar? Não. Em muitos países, as forças militares são responsáveis por atividades de fronteira, por exemplo. Nos Estados Unidos, a militarização da polícia ocorreu na época da guerra às drogas, nos anos 1980, e se fortaleceu com o 11 de setembro de 2001. Mas as forças policiais ainda são únicas e integradas: um policial de rua sobe na carreira por mérito. Por aqui, o caráter militar da polícia de rua sempre esteve presente em maior ou menor intensidade ao longo da história. "Até hoje, isso não foi alterado pela Constituição de 1988. As polícias estão atreladas às Forças Armadas", diz Cubas. Cabe à polícia militar fazer o chamado trabalho ostensivo, com o pé na rua, e à polícia civil o trabalho de investigação.

O que tem a ver a PM com a ditadura? Quando o governo federal incorporou as forças policiais, fortaleceu a rígida a formação policial. "Essa cultura ficou evidente, e a polícia passou a se submeter ao Exército. Antes, havia certa autonomia por parte dos estados, mas criou-se uma estrutura mais hierarquizada e extremamente fechada. Isso tem um impacto", afirma Fernanda Prates, pesquisadora do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Direito Rio (Fundação Getúlio Vargas).

Mas qual a relação entre os policiais e o Exército? Até hoje, o artigo 144 da Constituição determina que os policiais militares são forças auxiliares e de reserva do Exército, o que significa que, mesmo a PM sendo submetida ao governo do estado — e os governadores sendo chefes de segurança pública —, as Forças Armadas podem recrutar policiais em casos de necessidade. Mas, na prática, as atividades exercidas por um policial são muito diferentes daquelas feitas por um soldado do Exército.

E qual o efeito disso? A lógica militar cria um espírito corporativo entre os policiais, que têm uma formação rígida, com base na hierarquia e na obediência. Por conta da lei, também existe a proibição de greves e formação de sindicatos pelos membros da corporação. Em 2017, o STF (Supremo Tribunal Federal) estendeu a proibição de greves e sindicatos para policiais federais e civis, por se tratar de um serviço essencial. A decisão é polêmica — e impede os policiais de exigirem melhores condições trabalhistas, por exemplo —, o que poderia melhorar alguns índices de satisfação, tanto dos próprios trabalhadores quanto da sociedade em relação ao trabalho da polícia.

E por que a PM tem fama de ser tão violenta? "Não dá para dizer que a polícia é violenta. A gente tem uma sociedade violenta. Episódios recentes mostram que a temos uma sociedade autoritária", diz Cubas. "Não que isso justifique ações da polícia, mas ajuda a explicar sua violência", completa. Além disso, há a defesa do uso da força e a falta de espaço para diálogo. "No processo de formação, um policial tem que esquecer a vida civil, tem um processo de distanciamento da vida civil", diz Cubas. Segundo a pesquisadora, isso tem um impacto na construção da identidade do policial.

E o que significa desmilitarizar a polícia? Uma legislação que seria necessária para desatrelar polícia e Exército: "Não adianta desvincular os corpos e construir uma polícia que seja culturalmente militarizada", diz Prates. O processo de desmilitarização passa por uma reforma na corporação, no modo como o trabalho e as carreiras são organizadas e nas relações dentro da instituição. "Significa uma mudança profunda no que é ser policial. O modelo atual prejudica que relações mais democráticas sejam adotadas. Se a gente quer uma polícia democrática, ela precisa viver isso dentro da instituição", afirma Cubas. "Quando a gente fala em desmilitarizar, significa tornar a polícia mais moderna e democrática para que os policiais tenham suas habilidades técnicas valorizadas e se sintam valorizados ao atuar nas ruas, de acordo com os princípios de uma ordem democrática de fato."

Errata: este conteúdo foi atualizado
A primeira versão deste texto afirmava que D. João 6º aportou no Brasil com a Família Real Portuguesa. Na realidade, ele só foi coroado em 1818, após a morte de sua mãe, D. Maria 1ª, em 1816. Além disso, o decreto que forma a Polícia Militar é de 1969, e não de 1970, como havia sido informado. Os trechos foram corrigidos.