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'Pode abrir a porta agora': a dura quarentena de uma brasileira em Taiwan

A brasileira Chialin Chiang com os dois filhos, Zack e Dylan, quarentenando em um hotel de Taiwan - Arquivo pessoal
A brasileira Chialin Chiang com os dois filhos, Zack e Dylan, quarentenando em um hotel de Taiwan Imagem: Arquivo pessoal

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

07/04/2021 04h01

O telefone tocou às 8 horas da manhã em ponto. Minutos depois, reverberou o aviso no alto-falante: quarto 710, você pode abrir sua porta agora.

Esta foi a primeira de três ligações que a stylist paulistana Chialin Chiang, 43, recebeu no quarto onde fez quarentena obrigatória de 14 dias em Taiwan. Ela vestia a máscara e abria a porta para pegar o café do McDonald's deixado por funcionários do hotel. Funcionários de que, flanando como fantasmas pelos corredores desertos, ela nunca viu o rosto.

Ao meio-dia, eles ligavam para avisar a chegada do almoço; às 18h, a do jantar. O menu era sempre um obentô típico deste lado do mundo, com arroz japonês, legumes diversos e um tipo de proteína, principalmente peixe ou frango. Assim passaram os dias.

Entre 17 e 31 de março, a stylist e seus dois filhos viveram uma rotina muito diferente da que tinham na Vila Talarico, na zona leste de São Paulo, sob o tique-taque de um relógio à espera da próxima oportunidade para abrir a porta, única saída para o mundo lá fora.

Chialin e os filhos embarcaram no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, por volta da 1 hora da madrugada do dia 15 para 16. Fizeram escala em Dubai, e de lá partiram para a pequena ilha de Taiwan, cujo território de 36 mil km² é menor que o estado do Rio de Janeiro (43 mil km²). Os 23,57 milhões de habitantes de Taiwan por pouco ultrapassam o aglomerado de gente da região metropolitana de São Paulo (21,9 milhões de habitantes, segundo dados do IBGE de 2020).

Desde o início da pandemia, no ano passado, Taiwan teve apenas 1.023 casos e 10 mortes por covid-19. Tido como modelo mundial no controle do vírus, Taiwan é, mas não é um país. O território chinês foi ocupado pelo Japão entre 1895 e 1945; pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945) voltou para o domínio da China; pós-Revolução Chinesa (1949), tornou-se refúgio de cerca de 2 milhões de dissidentes. Desde então, no continente se consolidou a gigante República Popular da China, cuja capital é Pequim; no mar, formatou-se a República da China, isto é, a ilha de Taiwan, também conhecida como Formosa.

À revelia da China (que até hoje a considera uma província rebelde), Formosa formou-se com governo, capital, moeda (NTD, o novo dólar taiwanês), IDH e PIB próprios. Na prática, é um Estado independente, mas, no papel, não é reconhecido pelas Nações Unidas nem pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Logo, é, mas não é um país.

O quarto de hotel ontem a estilista brasileira Chialin Chiang quarentenou, em Taiwan - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O quarto de hotel ontem a stylist brasileira Chialin Chiang quarentenou, em Taiwan
Imagem: Arquivo pessoal

E foi onde Chialin decidiu viver, ao menos pelos próximos dois anos. "Um lugar de busca aos antepassados", diz ela, que nasceu no Brasil, mas é filha de taiwaneses que imigraram na década de 1970. Do lado paterno, de Lukang, ela gostaria de descobrir mais sobre a avó aborígene. Do lado materno, de Hualien, sobre os traumas da ocupação nipônica. "Não gostaria que a história da família fosse apagada."

Em busca do passado...

Tempos atrás, conheceu diversas famílias asiáticas peregrinando com crianças durante uma viagem a Santiago de Compostela, na Espanha, o que lhe despertou o desejo de mostrar aos garotos um mundo fora da bolha - a que ela se refere como um processo de descolonização, um tipo de busca de identidade, para "entender o que é ser amarelo, principalmente num mundo não-amarelo como o atual", como ela afirma. "Para os meninos, sinto ser importante, pois só sabemos quem somos se soubermos de onde viemos", destaca.

Taiwan tornou-se, então, o destino almejado. Era a oportunidade para os garotos aprenderem mandarim, o idioma dos avós, e para passarem por "unschooling" (no Brasil traduzido como desescolarização), um processo de aprendizado que prioriza experiências - e não necessariamente aulas.
Deflagrou-se a pandemia, a ideia de normalidade derreteu, o caos se instaurou e Taiwan, a bela Formosa, nem de longe amargou dias tão trágicos quanto o Brasil. Em 2020, Chialin começou a organizar a documentação para pedir a cidadania para os filhos.

17 de março foi a noite em que eles desembarcaram no Aeroporto Internacional de Taiwan, em Taoyuan, a cerca de 50 quilômetros da capital, Taipei.
Taiwan ficou famosa pelo controle de casos na pandemia, apostando alto na testagem em massa e na quarentena rígida. Em janeiro de 2020, foram abertos 2.117 quartos para isolamento de passageiros vindos do exterior; em fevereiro de 2021, diante do boom de variantes do vírus, o país lançou novas regras de quarentena para viajantes que passaram pelo Brasil: antes de pisar os pés no território taiwanês, todos deveriam passar 14 dias de quarentena, de graça, em um dos 45 mil quartos disponíveis em 102 centros e hotéis organizados pelo governo. Chialin, a mãe dela e os dois filhos se enquadraram nessa categoria.

Antes de sair do Brasil, eles precisaram mostrar um teste negativo para covid-19 e preencher formulários indicando informações como o número do voo e da poltrona. Ao aterrissar, foram os primeiros a sair do Airbus da Emirates em Taoyuan, seguindo as orientações oficiais. "Um funcionário do governo já estava à espera na saída, sinalizando por onde deveríamos ir", lembra ela.

Quase em fila indiana, eles caminharam até uma área onde fizeram outro teste de covid-19, e precisaram esperar os demais passageiros passarem pela imigração. No braço de todos os passageiros vindos do Brasil, é grudado um adesivo azul redondo que diz "quarantine".

Cruzando a fronteira, o primeiro passo é comprar um chip de celular - obrigatório, diz Chialin, para que eles possam ser monitorados na quarentena. Dois chips pré-pagos, válidos por 90 dias, custaram 3.600 NTD (R$ 729). Funcionários do governo ligam duas vezes por dia para perguntar a temperatura dos quarentenados. No aeroporto, uma equipe de limpeza paramentada, passa spray desinfetante "por tudo, tudo o que você encostou", frisa ela.

Por volta da meia-noite, eles chegaram ao "hotel", um endereço que ela só descobriu ao buscar a localização do GPS no smartphone. "Eles não dizem onde você vai ficar. Você sai do aeroporto e já vai para o ônibus, que te leva ao centro do governo. Ninguém rela nas suas malas, nem leva, nem diz nada.

No hotel, o ônibus entra no subsolo, você entra pelos fundos, pelo elevador de serviço. Um funcionário pede para você assinar mais um formulário, outro pergunta o que tem na mala - tesoura, cigarro, bebida alcoólica são confiscados até o fim da quarentena", conta. Antes de entrar no quarto 710, a última lembrança de Chialin foi apertar o número 7 do elevador - o único botão permitido para ela apertar.

... e do futuro

As portas do elevador se abriram no sétimo andar. Outro funcionário estava à espera deles, apenas para indicar a direção do quarto.
Chialin e os dois filhos ficaram juntos - uma exceção, pois os meninos são menores de idade. A mãe dela ficou em outro quarto. Casais também são designados para quartos separados na quarentena, cada um no seu quadrado.

Uma vez fechada a porta, é proibido abri-la sem autorização expressa dos funcionários, um anúncio que é feito no alto-falante, em mandarim. Se deixar de reportar um histórico preciso de viagens pode valer uma multa de 150 mil NTD (R$ 30 mil), abrir a porta sem autorização por um segundo custaria R$ 18 mil.

Nos 14 dias seguintes, Chialin e os garotos passaram o tempo todo em um quarto de hotel do tamanho de uma quitinete, com duas camas queen size, frigobar, wifi, TV gigante e três refeições por dia. "Todo santo dia o café da manhã era McDonald's, foi a única coisa de que não gostei", diz Dylan.

Zack e Dylan, filhos da estitilista brasileira Chialin Chiang, quarentenando em um hotel de Taiwan - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Zack e Dylan, filhos da estitilista brasileira Chialin Chiang, quarentenando em um hotel de Taiwan
Imagem: Arquivo pessoal

Na frente do hotel havia um McDonald's, um karaokê e um templo. "Deduzi que é o distrito de Taoyuan, pois ficamos pouco tempo no ônibus vindo do aeroporto. A cidade estava acontecendo lá embaixo, não parava de passar gente na rua", lembra Chialin. "Conversando com meu pai, eu dizia: 'é estranho, não sei onde estou exatamente'."

Os garotos ficaram entretidos com livros, games, gibis da Turma da Mônica, cartas do Pokémon e um jogo de RPG desenhado do zero por Dylan. "Que dia é hoje mesmo?", ele perguntou na terça-feira, 30 de março, em uma das conversas que todos tivemos via vídeo no WhatsApp.

Chialin conseguiu descansar na travessia taiwanesa tudo o que não descansou em um ano de pandemia no Brasil. "No quarto, consegui desligar de tudo. Fiquei aliviada. Finalmente, consegui dormir, dormir de verdade. Meus pais, idosos, foram vacinados. Estou com os meninos em um país onde a vida já está o mais próximo possível da normalidade."

Às 7 horas da manhã de 1º de abril, eles foram liberados da quarentena obrigatória. Ainda vão passar sete dias em um Airbnb em Taipei, um extra da quarentena indicada pelo governo que se chama "self-health management", quando devem seguir à risca orientações como usar máscaras, higienizar frequentemente as mãos, monitorar temperatura, evitar espaços públicos e adiar atendimentos médicos não urgentes. Após o dia 7, o futuro começa de vez para os Chiang.