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De ícone religioso, ovo vira símbolo da crise alimentar durante a pandemia

Paulo Enéas e seu carro do ovo esperam clientes em rua no bairro do Campo Limpo, zona Sul de São Paulo - Rodrigo Bertolotto/UOL
Paulo Enéas e seu carro do ovo esperam clientes em rua no bairro do Campo Limpo, zona Sul de São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB

04/04/2021 04h01

O mundo é um ovo. O seu e o do baiano Paulo Enéas, 44, também. Há oito anos sem saber o que é férias, ele percorre três rotas pelas zonas Oeste e Sul de São Paulo toda a semana, espalhando uma única mensagem: "Alô, alô, freguesia, está passando na sua rua o carro dos ovos".

Desde o início das civilizações humanas, ovo é símbolo da fertilidade, da renovação, do renascimento, até mesmo na versão achocolatada e marqueteira da Páscoa atual. Mas, na crise econômica que vivemos, ele representa mesmo é a forma mais acessível (e às vezes a única) de proteína animal para a população. "O preço subiu na pandemia porque a ração das galinhas ficou mais cara, mas não se compara ao da carne, que disparou", analisa Enéas.

Enquanto as carnes aumentaram até 30%, puxadas pela alta das exportações, o ovo de galinha teve uma inflação de aproximadamente 10% no período da pandemia. As razões disso foram o aumento do preço do milho e da soja, alimentos das galinhas que são cotados em dólar e também exportados para outros países. Somado a isso, há os reajustes da gasolina.

"Esse negócio de parar de esquina em esquina gasta muito combustível. Por isso, não posso arriscar e preciso fazer sempre o mesmo caminho, onde tenho minha clientela fixa", conta o vendedor.

Natural de Belo Campo, no sertão baiano, Enéas veio jovem para São Paulo e trabalhou em uma empresa de pisos elevados, esses que escondem a fiação nos escritórios. Depois de ser demitido em 2013, distribuiu currículo, fez fila de emprego e nada de vaga com carteira assinada.

Nesse período sem trabalho, acompanhou seu irmão João, que é caminhoneiro, em três viagens para Bastos (SP), conhecida como "a capital nacional do ovo''. "Não gostei da vida na estrada, dormir em posto e ficar longe da família. Mas me veio a ideia de revender o ovo que meu irmão trazia para os supermercados daqui", lembra.

Paulistas da gema

Nessa cidade, você literalmente pisa em ovos (é o desenho no calçamento urbano). As lâmpadas nos postes de iluminação têm formato ovoide. O brasão e a bandeira do município ostentam a cabeça de um galináceo. E a área verde central é conhecida como "a praça do omelete", com seus bancos pintados, como não poderia deixar de ser, na cor amarelo-ovo.

Distante 550 quilômetros da capital paulista, Bastos possui uma população de 35 milhões de aves e 21 mil humanos, ou seja, mais de 1.600 penosas por pessoa. Com o maior plantel de galinhas poedeiras do país, é responsável por 20% da produção nacional de ovos.

Além das moscas atraídas pelo cheiro de titica das granjas, milhares de visitantes costumam visitar a cidade para sua "festa do ovo", em julho — celebração devidamente suspensa durante a pandemia. Entre as atrações tradicionais do evento está uma reprodução do monte Fuji feita com ovos vermelhos na base e brancos no topo, para representar a neve do local.

Capital do ovo - Reprodução/Prefeitura de Bastos - Reprodução/Prefeitura de Bastos
Escultura feita com cartelas de ovos representa o monte Fuji na festa do ovo em Bastos (SP)
Imagem: Reprodução/Prefeitura de Bastos

A escultura dá a pista: a comunidade japonesa, que representa 12% da população local, está por trás da atividade econômica que impulsiona o município desde a década de 1950. Mas o ponto alto da festividade é o concurso "campeões de qualidade", com 18 juízes especialistas julgando os melhores produtores.

Eles observam e tateiam as cascas para verificar textura, forma e coloração. Depois quebram o ovo sobre uma bandeja e avaliam as viscosidades e as espessuras da clara e a redondez e uniformidade da gema. Para não cair nas trapaças da subjetividade dos humanos, a produção avícola passa também pelo Digital Egg Tester, uma máquina vinda do Japão que dá um resultado preciso de quem é o melhor.

Eneas tem algumas dessas granjas premiadas entre fornecedores dos mais de 1.000 ovos que transporta por dia em seu porta-malas. Mas poucos clientes sabem da origem do produto, ao contrário do antecessor "carro da pamonha" que anunciava "as delícias de Piracicaba" como se fosse Denominação de Origem.

Galinha dos ovos de ouro?

Enéas acorda diariamente às 6h e sai com seu "carro do ovo" do município de Itapecerica da Serra em direção à São Paulo. Até as 10h, deixa o volume baixo do alto-falante, para não incomodar as vizinhanças, ainda mais com tanta gente fazendo home office.

As ruas com prédios são suas preferidas. Tanto é assim que, no fim do expediente, das 16h às 20h, fica parado em uma esquina no bairro do Campo Limpo, bem na entrada de uma rua onde há um verdadeiro paliteiro de edifícios. "Antes só passava, mas muitos clientes nem ouviam o som, porque seus apartamentos ficavam no alto ou com as janelas para o outro lado. Agora estaciono e pego todo mundo voltando para casa." A estratégia também poupa combustível.

carro do ovo 1 - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Paulo Enéas atende clientela em rua do município de Taboão da Serra, onde estacionou seu "carro do ovo"
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Há oito anos Enéas usa o mesmo slogan, baixado da internet, entre as mais de 50 opções de vinhetas para vendedores ambulantes de ovos. Apesar de anunciar na sua mensagem "galo caipira", não tem mais o item à venda. "Faz dois anos que perdi o fornecedor, mas o pessoal fala para eu não trocar porque já me reconhecem pelo som", conta. Durante a pandemia, começou a vender laranja porque um vizinho trabalha com o produto e "porque falaram que ajuda contra o vírus" — a vitamina C é essencial para o sistema imunológico, mas não é garantia de nada contra a covid-19.

Enéas ergue a maquininha no ar e espera dois minutos para aparecer o sinal e receber o pagamento no débito ou crédito. Ele diz que tem a mesma renda de quando estava empregado, mas não abraçou a ideologia empreendedora. "Tem muitas desvantagens. É duro não ter férias, pagar plano de saúde, ficar sem 13º. Quem fala muito esse papo que negócio próprio é bom deve ter emprego fixo", ironiza.

Por vezes, ele cruza na mesma rua com outro carro do ovo, mas diz que não surge daí nenhum duelo. "Se tiver algum freguês fiel por ali, eu sigo na rua. Se não, parto para a próxima."

Bolhas, globos e ovos

Por sua simetria e formato precisos, o ovo é um ícone da Criação, desde a pré-história. O curioso é que a própria ciência aumentou essa simbologia ao comprovar,, a partir do desenvolvimento dos microscópios no século 18, que a reprodução humana também se dava por meio de envoltórios similares, os óvulos dentro de placentas dentro de úteros dentro de barrigas maternas.

O ovo, presente em várias crenças anteriores, entrou de gaiato também na Páscoa cristã. A semana escolhida para a morte e ressurreição de Jesus foi encaixada no calendário justo na primeira lua cheia após a entrada da primavera no Hemisfério Norte, tempo celebrado como momento de renascimento depois do frio e da austeridade do inverno.

Pela mitologia anglo-saxã, por exemplo, é o tempo de Ostara, a deusa da fertilidade representada cercada por ovos e coelhos (eles não podiam faltar) — seu nome está na origem das denominações em inglês (Easter) e em alemão (Ostern).

carro do ovo - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Tomado por produtos, carro do ovo anuncia pelo alto-falante sua chegada à rua de Taboão da Serra (SP)
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Atribui-se aos confeiteiros franceses dos tempos monárquicos a criação dos ovos de chocolate. Eles recheavam as cascas, esvaziadas de clara e gema, e depois pintavam a superfície.

A tradição de ovos decorados na Páscoa cristã é muito forte no Leste Europeu, com as cascas de ovo de galinha sendo pintadas finamente com motivos geométricos. Desse costume surgiu a moda entre os czares russos de encomendar joias em forma de ovos. Os mais famosos foram fabricados por Peter Carl Fabergé, entre 1885 e 1917. São considerados obras-primas da joalheria e disputados por colecionadores, que não duvidam em pagar cerca de US$ 10 milhões por um dos menos de 70 existentes.

Os ovos de Enéas saem por um valor bem mais modesto: 30 ovos jumbo por R$ 20. O preço acima das redes de supermercado se justifica pela comodidade de receber em casa e a possibilidade de reclamar e trocar se aparecer algum podre.

Sua clientela é formada majoritariamente por idosos, mas ele perdeu vários desses fregueses na pandemia. "Tem muito velhinho morrendo. Tinha um que não via faz tempo. Um dia vi o carro dele passando, mas quem saiu dele foi o genro e me contou que ele tinha morrido de covid-19", relata Enéas.

Em uma rua do município de Taboão da Serra, uma senhora encontrou Enéas e brincou: "Achei que você não vinha mais, e eu ia ficar sem ovos justo agora". Depois de comprar sua cartela, ela se despediu: "Tudo de bom e Boa Páscoa!" Enéas seguiu sua via-crúcis particular na Sexta Santa e no sábado de Aleluia. Só no domingo, como toda semana, não vai rodar a cidade. Mas nada de descansar: é dia de limpar e arrumar tudo para trabalhar no dia seguinte.