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Ex-metalúrgicos do ABC consertam guarda-chuvas para ganhar a vida

Alberto Viana conserta guarda-chuva em banca especializada nesse reparo no centro de Santo André (SP) - Rodrigo Bertolotto/UOL
Alberto Viana conserta guarda-chuva em banca especializada nesse reparo no centro de Santo André (SP)
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB

15/01/2021 04h01

Janeiro costuma ser um bom mês para Alberto. Com as tempestades, as pessoas buscam a proteção de seus serviços. Ele conserta guarda-chuvas há cinco anos, mas nunca viu um verão mais incerto como o de 2021. A tormenta é também econômica, com o auxílio emergencial do governo parando de pingar no bolso de uma população sem carteira de trabalho assinada. É uma época em que os índices pluviométricos e de desemprego até parecem que sobem juntos.

Alberto Viana, 40, conhece bem essa história. Antes de guarda-chuveiro, ele foi operário de fábrica. Sua banca fica no centro de Santo André, município do ABC Paulista. Perto de lá, mais metalúrgicos sem emprego adotaram um ofício tão esquecido quanto os próprios guarda-chuvas, sempre perdidos por aí ou descartados ao primeiro defeito.

A quatro quadras dali está a barraca de Jorge Amâncio, 60. Ele trabalhou para várias firmas de autopeças até chegar à linha de produção da Volkswagen, mas uma demissão, 15 anos atrás, o deixou ao relento. Hoje viúvo, vive da pensão da falecida e conserta guarda-chuvas como bico. "Em média, reparo dois por dia. Hoje mesmo não teve nenhum serviço. Só não saio no prejuízo porque não pago ônibus nem aluguel." De favor, ele monta sua bancada no canto de um estacionamento, perto da estação de trem.

Ali perto, há mais dois reparadores entre os camelôs das feirinhas populares embaixo dos viadutos. Já na avenida General Glicério, o ex-metalúrgico José Barreira fez ponto por duas décadas até sumir da paisagem há cinco anos, como desapareceram tantas indústrias e comércios nessa região que simbolizou um Brasil com pretensões desenvolvimentistas e industriais — a saída da Ford, após um século de país, é a prova mais recente desse cenário.

Hoje, os guarda-chuvas vêm em contêineres da China. Os modelos mais frágeis são vendidos no atacado por R$ 7, justamente o valor médio que Alberto cobra para recompor as varetas e dar vida nova ao que estava prestes a virar uma carcaça metálica.

De hierárquico a descartável

Assim como as capas, os guarda-chuvas ajudam a exemplificar a lógica capitalista de oferta/demanda e dos três "pês" (ponto, produto e preço): antes e durante as pancadas de chuva, eles podem triplicar de valor, principalmente em lugares de grande circulação. Depois, é aplicada outra regra de mercado: a obsolescência programada de produtos que não resistem à ventania e ao abre-e-fecha diário.

Alberto coleta essas sombrinhas abandonadas em lixeiras e calçadas após as tormentas. "Uma vez por mês vou até a rua 25 de Março [em São Paulo] para comprar peças novas, mas a maioria vem de guarda-chuvas velhos que me doam ou que eu acho por aí", conta ele, que cria dois filhos e sustenta a família com os R$ 1.500 mensais que tira com os consertos e vendas.

peças de guarda-chuva - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Peças de guarda-chuva sobre a bancada de Alberto Viana, que trabalha consertando sombrinhas no ABC Paulista
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Até a década de 1970, o Brasil produzia a maior parte do que consumia. Daí, começaram a entrar no mercado os produtos "made in Taiwan", muitos vindos via Paraguai. Com a abertura das importações durante o governo de Fernando Collor de Mello (1990-92), a maioria das indústrias nacionais fechou. Justamente nesse período, a China se transformou no chão de fábrica mundial e dominou vários mercados, inclusive a quase totalidade desses protetores contra chuva e sol no Brasil.

O cálculo é que a China exporta por ano cerca de 900 milhões desses produtos. Ou seja, em menos de uma década, forneceria sombra para cada ser humano sobre a crosta terrestre. A maior parte de sua produção está concentrada em Zhejiang, província costeira no centro do país. Lá está Songxia, conhecida internacionalmente como "China Umbrella City", com 2.000 manufaturas locais.

Na capital dessa província, Hangzhou, existe até o Museu do Guarda-Chuva Chinês, com seus 3.000 m² mostrando cada detalhe dessa história. Desde a Mesopotâmia, há 4.000 anos, cada civilização antiga tem registro de para-chuvas e para-sóis, mas a maioria deles era manipulado por serviçais para resguardar seus superiores das intempéries. É precisamente na China de 2.000 anos atrás que aparecem os primeiros registros de sombrinhas dobráveis, feitas de bambu, seda e dobradiças de bronze.

Na China Antiga, o uso de guarda-chuvas era símbolo de distinção social. Só o imperador podia usá-los na cor azul, enquanto os amarelos e vermelhos eram portados por aristocratas e burocratas — o povo só tinha direito aos cobertos com papel. No alfabeto chinês, há até um ideograma para o objeto, que parece um esboço dele.

Após as Grandes Navegações, os europeus importaram paulatinamente da Ásia o hábito das sombrinhas, até que, em 1852, pós-Revolução Industrial, surgiu o modelo com estrutura de aço na Inglaterra. Em 1928, foi patenteado em Viena (Áustria) o "guarda-chuva de bolso", com dobradiças no meio das varetas para torná-lo o mais portátil possível. Esse é o modelo que se usa até hoje, já que o "air umbrella", um bastão tecnológico com jatos de ar na extremidade superior que impediriam a água de cair no seu feliz portador, ficou no protótipo mesmo.

Precipitações da vida

Reparar guarda-chuvas era um ofício comum pelas ruas até a enxurrada de produtos descartáveis tomar o mercado. Hoje em dia, com algum esforço, esse profissional é encontrado em cidades de médio porte, onde o ritmo de vida um pouco mais lento permite reparar na existência deles e dos guarda-chuvas quebrados em um canto da casa.

Uma mentalidade mais sustentável, contudo, pode dar sobrevida à função. "Quem tem um ofício, como os sapateiros e as costureiras, se safam nessas épocas de desemprego. As pessoas estão sem dinheiro para sair comprando, mas dá para pagar um consertinho aqui e ali. E umas moedas sempre vêm pra gente." Assim Alberto explica a escolha da carreira.

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Alberto Viana testa um dos guarda-chuvas consertados por ele diante de sua banca no centro de Santo André (SP)
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Além de operário, ele foi manobrista e entregador de revistas e jornais. Um domingo, em um culto da igreja Assembleia de Deus, contou que estava desempregado para outro fiel, que prometeu ensinar as manhas de sua ocupação. "Seu Adilson chamou três amigos para aprender. Um virou garçom, outro preferiu ser palhaço e Papai Noel de loja, e só eu abracei a profissão", lembra.

Alberto trabalhou em três pontos da cidade, buscando clientela e montando e desmontando sua barraca diariamente. Até que passou diante de uma antiga banca de jornais no centro de Santo André com a placa "aluga-se" e negociou com a dona. No primeiro mês conseguiu os R$ 400 para pagar o aluguel e decidiu ficar no lugar em que está até hoje.

Quando foi registrar sua empresa, não encontrou entre as opções a atividade "guarda-chuveiro" ou "conserto de guarda-chuva". Escolheu o que mais se aproximava: "reparos de calçados, bolsas e artigos de viagem", e aproveitou para diversificar seu comércio, vendendo cadarços, palmilhas de tênis e tiras de chinelos — isso garante o rendimento nos meses de estiagem no inverno paulista.

Ele também tem uma máquina de costura, para os serviços maiores nos tecidos de cobertura, mas prefere deixar em casa. "Arrombaram a banca seis meses atrás e levaram minhas ferramentas e uma bicicleta. Ainda bem que não roubaram minhas peças. Algumas são bem difíceis de achar", relata.

Alberto Viana usa galões de água cortados como almoxarifado. As etiquetas coladas neles identificam cada parte do artefato: "barbatana", "coroa bengalão", "engate do cabo", "chapéu de metal", "batedor de plástico", entre outros.

peças de guarda-chuva - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Galões de água servem de almoxarifado de peças para o guarda-chuveiro Alberto Viana
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Nas últimas décadas, São Paulo deixou de ser a "terra da garoa" para entrar em uma era de extremos, com enchentes frequentes entre longos períodos de seca. Uma das razões foi o paredão de concreto que se ergueu com o crescimento urbano, bloqueando a brisa úmida marinha.

Pela proximidade da Serra do Mar, determinadas áreas do ABC, principalmente São Bernardo do Campo e Santo André, ainda preservam dias de névoas e chuviscos, como testemunham os turistas de fim de semana nas subidas e descidas em direção às praias.

Seja uma neblina ou um dilúvio, os guarda-chuveiros de lá olham as previsões esperando por nuvens carregadas. No sentido literal, sem metáforas.