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Vivendo em situação de rua, casal é amparado em bairro nobre de SP

O casal Mariana Fortunato da Costa e Danilo Nolasco - Reinaldo Canato/UOL
O casal Mariana Fortunato da Costa e Danilo Nolasco
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Isabela Mena

Colaboração para o TAB

05/04/2021 04h01

Danilo fazia check-in em um albergue do centro de São Paulo quando bateu os olhos em Mariana, que retribuiu o olhar. Era uma tarde de julho de 2017. "Falei pra um amigo: 'tem um menino bonitinho olhando pra mim ali'. Quando virei, ele estava nas minhas costas. Fiquei vermelha e falei pra ele: 'menino, você fuma um?'. Ele falou 'fumo' e começamos a conversar", conta Mariana. A paixão à primeira vista logo se transformou em amor, do tipo que cuida, compartilha, briga, tem tesão; do tipo "na alegria e na tristeza, na saúde e na doença". Mas sempre na pobreza.

Mariana Fortunato da Costa, 23, é mulher trans. Rejeitada pela família, fugiu de casa, em Suzano, na região metropolitana de São Paulo, aos 18. Danilo Nolasco Coelho, 25, saiu de Artur Alvim, na zona leste da capital, porque não se dava bem com o irmão mais velho. Encontrou abrigo em uma casa de usuários de crack, onde se viciou — está limpo desde janeiro. Ambos são portadores do HIV e fazem tratamento no Centro de Referência e Treinamento DST/Aids.

Há muito de belo e de feio em sua vida como casal. No mês sete da pandemia, em outubro de 2020, os dois se mudaram para o que veio a ser — e já não é mais — sua única morada juntos sob um teto. O local é a entrada avarandada de um imóvel vazio (mas não abandonado) na Rua Abílio Soares, no Paraíso, zona sul de São Paulo. Os dois já carregavam uma barraca para dormir pelas ruas do bairro. Eram sempre expulsos, até que encontraram a varanda. Entraram com a roupa do corpo e um pedaço de papelão. Saíram, seis meses depois, com móveis, duas malas grandes de roupa e dois gatos.

Em 10 de março, um homem que disse ser advogado do proprietário da casa aguardava Mariana e Danilo retirarem seus pertences para que dois homens fechassem o espaço com placas de madeira. Segundo o casal, o homem já vinha conversando com os dois. "Quando entramos, ele veio e pediu para não invadirmos a parte de dentro", conta Mariana. "Da última vez, falou que teríamos que sair e que nos daria uma ajuda." Naquele dia, o advogado deu R$ 1.000, em dinheiro, ao casal. Na semana seguinte, combinou de conversar com a reportagem, mas não respondeu mais às mensagens do TAB.

O casal Mariana Fortunato da Costa e Danilo Nolasco, que estavam em situação de rua morando na rua Abílio Soares, no Paraíso - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
O casal Mariana Fortunato da Costa e Danilo Nolasco, que estavam em situação de rua morando na rua Abílio Soares, no Paraíso
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Lar, colorido lar

Até o dia do despejo, a pequena varanda vinha ganhando ares de casa. Como o local é separado da rua por um muro baixo, com balaústres, dava ao transeunte visão quase total do espaço. Dentro (tome fôlego) havia: colchão de casal, dois armários, tábua de passar roupa que fazia as vezes de mesa, gaveteiro plástico, arara de roupas, fruteira, pufe, pacote de ração, caminha e caixa de transportar gatos, edredom, plantas, cesta com produtos de limpeza e um sem-número de utensílios domésticos, incluindo uma panela elétrica de arroz. Tudo disposto em um espaço exíguo, cerca de 10 m² de área assimétrica, em uma medição a olho.

Mas não era uma disposição qualquer. Mariana e Danilo organizaram tudo como quem monta casa própria. Quadros coloridos, plantas e uma cortina de tule rosa-choque serviam de decoração. A varanda passou a chamar atenção do entorno. Segundo o advogado, moradores de um prédio de frente, um edifício de alto padrão, pediam a retirada do casal — o que é corroborado por Ana*, funcionária de uma drogaria vizinha. "Alguns clientes reclamavam, mas também havia muitos que gostavam deles e doavam coisas. No Natal, eles ganharam tantos panetones que distribuíram pros funcionários da farmácia", fala. "Gosto deles, vou sentir falta."

Todos os pertences de Mariana e Danilo foram dados por moradores e frequentadores do bairro, muitos dos quais paravam na porta para ficar conversando.

A ocupação de Mariana Fortunato da Costa e Danilo Nolasco, no bairro do Paraíso - Isabela Mena/UOL - Isabela Mena/UOL
A ocupação de Mariana Fortunato da Costa e Danilo Nolasco na rua Abílio Soares, no bairro do Paraíso
Imagem: Isabela Mena/UOL

Thais Scarabe, 28, funcionária de uma loja sofisticada de roupas femininas, que fica a 70 metros do imóvel, endossa o coro elogioso e diz nunca ter ouvido reclamação — "pelo contrário, tinha cliente que os ajudava". Quando uma árvore caiu na rua, os dois resgataram um passarinho ferido, que deram para que uma das clientes da loja cuidasse.

O casal tem dois gatos, Mingau e Nino. Logo que se mudaram para a varanda, resgataram da rua um cachorro com pneumonia, o Negão, e o curaram com a ajuda do dono de um pet shop. Em uma ida à casa dos pais de Danilo, o deixaram na varanda. Como o cachorro latia muito, deu-se um diz-que-me-diz na vizinhança e, quando voltaram, Negão já não estava mais lá.

Joana*, 64, moradora de uma casa em frente à varanda, os ajudou a resolver a questão. "Começamos a amizade depois que levaram o Negão e a Mariana tocou minha campainha para perguntar", conta. "É uma pena eles irem embora, gosto deles. Às vezes, dava alguma coisa ou ajudava com dinheiro." Era na casa dessa vizinha que o casal recarregava o celular.

O imóvel de Joana destoa em tudo dos demais da região: a área é enorme, cheia de árvores, e a construção tem cara de original da fundação do bairro — segundo ela, tem cerca de 80 anos.

Mariana Fortunato da Costa, 23, com um dos gatos, no bairro do Paraíso  - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Mariana Fortunato da Costa, 23, com um dos gatos, no bairro do Paraíso
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Do Ibirapuera à Paulista

A rua Abílio Soares tem 1,8 km de extensão. Seus primeiros 800 metros, no bairro do Ibirapuera, têm, à esquerda, o Comando da 2ª Região Militar do Quartel General do Exército, o Comando Militar do Sudeste, o Ginásio Poliesportivo Mauro Pinheiro (no mesmo complexo do Ginásio do Ibirapuera) e o residencial do Comando do Leste. À direita estão o clube Círculo Militar de São Paulo e um dos quadriláteros mais nobres da cidade, o da rua Curitiba.

Quando inicia seu quilômetro final, no bairro do Paraíso, abriga, majoritariamente, prédios residenciais de classe média e comércio de rua. Há cerca de 15 anos, casas antigas vêm sendo demolidas para dar lugar a prédios de alto padrão. A presença dos moradores de rua em um imóvel ocupado é o oposto desse novo perfil de vizinhança. Ainda assim, o plano inicial dos dois foi continuar no bairro. "Nós queremos ficar aqui. Aqui, as pessoas já conhecem a gente, ajudam e gostam da gente", diz Danilo.

A administradora Lala Guedes, 44, já deixou uma conta aberta para eles na padaria da esquina. "São pessoas normais, longe da santidade e da bandidagem. Se fossem nossos vizinhos de apartamento, passariam despercebidos", diz. "Na real, eles têm um diferencial, que é a relação. A gente não vê isso todo dia. Eles flertam, conversam, se consultam quando estão contando histórias dizendo 'né, amor?', ficam de risadinha. E, como se isso já não fosse muito, ele ainda tem orgulho da namorada trans."

Barraca montada pelo casal Mariana Fortunato da Costa e Danilo Nolasco na rua Leme, depois de desocuparem a casa da rua Abílio Soares, ambas no Paraíso - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Barraca montada pelo casal Mariana Fortunato da Costa e Danilo Nolasco na rua Leme, depois de desocuparem a casa da rua Abílio Soares, ambas no Paraíso
Imagem: Reinaldo Canato/UOL
Tapete na entrada da barraca - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Tapete na entrada da barraca
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Mudança de CEP

Da varanda, Mariana e Danilo montaram uma barraca em frente a uma agência bancária desativada, na rua Tutóia. Cinco dias depois, um homem pediu que saíssem — haveria uma obra no local. Quase em frente há um dos primeiros edifícios de alto padrão construídos no bairro. Ao lado, um mais recente.

O casal então se mudou para uma rua lateral. Em uma noite de tempestade, explodiu um poste de luz próximo à barraca. "Começou a enfumaçar, ventar, parecia que ia desabar tudo. Comecei a chorar e a falar com Deus. Acredito muito no espiritual", diz Mariana. No dia seguinte, receberam a ligação de uma senhora que administra uma ocupação num bairro próximo. "Ela disse: 'vagou um cômodo, tragam já suas coisas, uma corrente e um cadeado."

Desligaram o telefone e organizaram a mudança. "Parei na rua um menino que eu conhecia e falei: 'menino, é muita coisa pra gente levar a pé, tem como você pagar um Uber? E ele pagou, né, amor?'."

Para alívio dos que não os queriam ali, e tristeza dos que gostavam deles, Mariana e Danilo se mudaram do Paraíso. Eles têm de novo um teto, agora com quatro paredes, uma tranca, luz elétrica e chuveiro. No bairro dos Jardins.

*nomes trocados a pedido dos entrevistados