Deficiente visual cria grupo no WhatsApp para enxadristas com cegueira
O fato de não ver absolutamente nada ao seu redor não impediu Oneide de Souza Figueiredo, 57, de jogar xadrez. O servidor público aposentado nasceu com glaucoma, mas joga xadrez desde a juventude. Além de enxadrista, Figueiredo é professor virtual do jogo.
Foi numa manhã cinzenta e fria do mês de maio que ele recebeu a reportagem de TAB em seu apartamento, no bairro Menino Deus, zona sul de Porto Alegre. Apaixonado pelo esporte, o aposentado, que também é síndico do prédio onde vive e diretor da Federação Brasileira de Xadrez para Deficientes Visuais (FBXDV), falava animado sobre seu projeto "Xeque-Mate para Todos". Ele quer mais cegos jogando xadrez online.
Em meados de julho de 2020, muitos enxadristas amigos seus relatavam o tédio do isolamento social. O objetivo do programa, segundo Figueiredo, é incentivar a prática para pessoas com deficiência visual em todo o território brasileiro.
Ele passou a incentivar colegas cegos que já sabiam jogar a ensinar outras pessoas, tudo pelo WhatsApp. Os áudios vão guiando a experiência. "Para a minha surpresa, a adesão foi grande'', explica ele, sorridente. Figueiredo é casado com a servidora pública Vera Luiza Bergamo, que também nasceu com glaucoma. O casal tem dois filhos, uma de 26 anos e um adolescente, de 17. Ambos não nasceram com problemas visuais.
Durante a explicação do jogo de xadrez adaptado, na mesa da sala de estar, ele deu detalhes minuciosos sobre cada peça exposta no tabuleiro, sempre tateando os objetos e olhando diretamente este repórter. Parecia que eu não estava entrevistando um deficiente visual.
"Nossa mão é nosso olho'', afirmou o jogador. Enquanto explicava o projeto, seu celular tocava. Era um aviso de mensagem sonora, com o nome da pessoa que estava chamando. Oneide pediu licença, falou alguns minutos ao telefone e retornou à entrevista. Um aluno da Colômbia estava afim de participar do Xeque-Mate.
A velocidade de suas mãos em "ver" e ouvir os áudios deixados no aparelho era impressionante, beirava o incompreensível.
Hoje o Xeque-Mate tem 80 alunos, espalhados por vários estados do Brasil, e 35 professores de xadrez. As aulas têm duração aproximada de 1h e são totalmente gratuitas. "Há alunos de 8 a 80 anos. Todos são portadores de deficiência visual e querem aprender a jogar", contou o instrutor.
O catarinense Marcelo Barbosa de Medeiros, 11, foi o primeiro aluno de Oneide — e também a inspiração para o projeto. Ele nasceu com problemas oculares, realizou cirurgias mas, ao completar um ano de idade, perdeu completamente a visão.
"Marcelinho", como é chamado por Oneide, avalia que desde que começou a jogar xadrez, notou uma melhora na linha de raciocínio. O menino joga xadrez pelo WhatsApp uma vez por semana, sempre no início da noite, na companhia de seu instrutor. Além do xadrez, Marcelo toca bateria e teclado, contou orgulhoso o pai, Wagner de Medeiros.
Outro aluno é Marcus Antonio Schllosser, 40, que reside no município de São José, na região metropolitana de Florianópolis. O catarinense, que joga xadrez há três meses, conta que perdeu a visão ainda bebê. "Nasci prematuro. Neste período, os médicos não taparam os meus olhos e me colocaram direto na incubadora, onde as luzes queimaram a minha retina", lembrou o rapaz. Marcus afirma que se inscreveu no projeto, pois queria conhecer mais sobre o jogo e suas estratégias, mas acabou reconhecendo que os exercícios de prática favoreceram a sua socialização, indiretamente.
A proposta pedagógica
As atividades são desenvolvidas em 5 fases de ensino: fase inicial, movimentos individuais, relação entre as peças, desenvolvimento sistemático e sentido posicional. Oneide explica que os jogos acontecem por ligação telefônica, mensagem de voz em salas de jogos virtuais no WhatsApp ou em plataformas próprias para os jogos de xadrez.
As regras do xadrez são praticamente as mesmas, tanto para os jogadores que enxergam quanto para os deficientes visuais. O que difere são as características do tabuleiro, peças, relógios — os aparatos que compõem o jogo. De acordo com o gaúcho, o tabuleiro do cego, feito em madeira, apresenta relevo, isto é, as casas pretas são um pouco mais altas em comparação às casas brancas. Além disso, todas as 64 casas do tabuleiro são perfuradas, facilitando assim o encaixe das peças.
"Qual é a maneira de nós, que somos cegos, de ver? Passando a mão, claro! Se as peças estivessem todas soltas, derrubaríamos tudo com as mãos", afirmou. Na explicação, o enxadrista simulou uma derrubada das peças com uma das mãos, o que foi impedido devido à fixação dos pinos no tabuleiro.
Outra curiosidade é que as peças pretas possuem um pino metálico na ponta. Isso serve para o deficiente visual, ao tocar no objeto, distinguir entre as peças brancas que não possuem pinos em suas extremidades superiores. Através do tato, pode-se sentir a textura da peça do xadrez, o seu peso, o tamanho e formato.
- Quer tentar? - perguntou ele a mim.
Fechei os olhos e coloquei as mãos sobre as peças de xadrez. Nunca na vida havia jogado, tampouco entendo as complexas normas desse jogo. Não foi difícil identificar as peças ao tocá-las, mas a sensação de estar "perdido no espaço" era enorme. Apenas sabia que ele (o professor) estava à minha frente, pois escutava seus comandos de voz.
Em uma disputa onde dois jogadores são cegos, a regra que vale é a seguinte: cada peça erguida é considerada peça jogada. A cada lance, o jogo deve ser anunciado em alta e clara voz, por ambos os enxadristas. Para a realização do jogo também é necessário um relógio de xadrez digital adaptado. O aparelho é importado e custa em média R$ 300. Com ele, o deficiente visual pode saber do tempo do jogo através dos fones de ouvido, onde se escuta a hora, os minutos e segundos. "A partida de xadrez é regulada pelo tempo e varia de acordo com o torneio. Há partidas de 25 minutos para cada lado. A gente joga com 1h30min, - o xadrez pensado, como se diz", esclareceu.
Oneide também destacou que os cegos, durante o jogo, dão nomes às colunas do tabuleiro em vez de citar somente as letras, como ocorre normalmente em uma disputa onde os praticantes enxergam. Por exemplo: A - Ana, B- Bela, C- Cesar, D- Davi, E- Eva, F- Felix, G- Gustav, H- Hector. "Isso ocorre porque o deficiente precisa anunciar o lance para o seu adversário, que também não o vê. Se eu disser B ou D, pode haver confusão de pronúncias e assim fica mais fácil", disse.
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