'Garimpo' na boate Love Story revela memórias da 'casa de todas as casas'
"Cinco milhões é muito pouco. Tinha noite aí que faturavam R$ 40 mil", afirma o senhor troncudo e simpático diante da ex-balada mais famosa de São Paulo. Ele fala com a autoridade de quem trabalha ali perto há quase 30 anos. É testemunha ocular do frenesi que tomava conta daquela calçada no centro paulistano desde setembro de 1991.
"Já vi policial morto aqui onde nós estamos. Morreu de bobeira. Teve uma briga aí dentro e ele deu dois tapas na cara de um bandido. O bandido deu a volta e pegou ele aqui, ó, onde nós estamos."
O relato é triste, mas explica em parte a comoção e a nostalgia despertadas pela notícia da falência da Love Story. A boate, que estava em recuperação judicial desde 2018, recebia bandidos e policiais. Traficantes e seus clientes. Playboys e manos. Prostitutas que chegavam após o expediente e só queriam se divertir. Prostitutas que chegavam após o expediente e abriam uma exceção quando alguém conseguia convencê-las a voltar ao trabalho. Gente que só queria dançar. Gente curiosa em conhecer aquele inferninho. Kurt Cobain. Mike Tyson. E gente, leia-se homens, em uma última tentativa desesperada por conjunção carnal depois de falharem em todas as tentativas anteriores. A "casa de todas as casas" era o campo onde o time dos solteiros fracassados disputava a prorrogação precisando virar a goleada sofrida no tempo regulamentar.
"Trata-se de um negócio muito atrativo. Conhecida nacionalmente e pronta para alguém assumi-la amanhã, livre de débitos trabalhistas, de condomínio, de tudo", explica Luis Piva, diretor comercial da Milan Leilões. Ele é um homem na faixa dos trinta anos, magro, com pinta de "faria limer". Usa camisa social, sapatênis e recebe a reportagem do TAB em uma terça-feira à tarde para explicar como funcionará o leilão judicial da Love Story.
O espaço está limpo e organizado, sem indícios das milhares de madrugadas ensandecidas que abrigou. Curiosamente, o espaço de quase 600 m² parece bem menor vazio — como se a boate estivesse encolhida de vergonha por seu fim melancólico.
"Uns vinte curiosos já me ligaram. A galera quer comprar um letreiro, uma toalha, um copo para ter uma recordação da casa. Ficam frustrados, mas não tem o que fazer", conta Piva.
Ou seja, não assistiremos a cenas como colecionadores partindo para a agressão pela posse de uma coqueteleira. Os objetos que estão no interior da Love Story não serão leiloados separadamente.
"O juiz e o administrador judicial optaram por vender o ponto fechado. É importante para maximizar o resultado da venda e pagar as dívidas da empresa junto aos credores", esclarece Piva. Quem quiser souvenir, então, precisará dar um lance pela Love Story inteira.
Com base no histórico de faturamento da boate (R$ 500 mil em um mês considerado bom) e na média de preços dos itens que ficaram lá dentro, chegou-se a um valor mínimo de pouco mais de R$ 5,5 milhões para a primeira fase do leilão, que irá de 20 de maio a 4 de junho.
Cada etapa do leilão é chamada de "praça". Caso ninguém adquira a casa noturna na primeira delas, outra será realizada entre 4 e 18 de junho, quando então o valor mínimo estabelecido cairá pela metade. Se, mesmo assim, a Love Story seguir sem novo dono, uma terceira praça começa em 18 de junho e vai até 5 de julho. Aí o lance é livre, sem valor pré-definido. Quem der mais, leva.
Pra que a pressa?
Por que alguém seria tolo o bastante para participar das duas primeiras praças, em vez de aguardar a última? "Geralmente, [o lance vencedor] sai na segunda praça porque o participante do leilão quer resolver logo e o juiz tende a não liberar valores abaixo da metade do inicial. Pode ser considerado um preço vil", explica Piva.
Dê adeus, então, ao sonho de usar seu FGTS em uma causa nobre. A não ser que algo dê errado, só mesmo quem tem alguns milhões à disposição será capaz de ressuscitar a Love Story. Também não adianta bancar o engraçadinho e se cadastrar no leilão só para dar aquele lance "zueira". Regras rígidas regulam leilões judiciais. Participar "de mentirinha" ou vencer o leilão e mudar de ideia depois pode resultar em penas previstas em lei.
Os responsáveis pelo leilão esperam que alguém do ramo adquira a boate para reabri-la assim que a pandemia permitir. O espaço parece pronto para voltar a funcionar amanhã. O valor do leilão não inclui o imóvel, que é alugado. O novo responsável pelo ponto, porém, terá uma sugestão de contrato de aluguel já estabelecida. Mas ele não será obrigado a segui-la. Poderá negociar termos diferentes. Embora desejável, também não é obrigado a seguir no ramo das baladas.
De repente uma igreja, uma padaria artesanal. Enquanto você dorme, o vencedor do leilão estará livre para empreender. Só precisará avaliar se vale a pena desmontar uma boate inteira em nome de um sonho.
"Usamos o método comparativo para definir o valor de um item", explica Piva, a respeito de uma velha e surrada toalha de mesa com a logomarca da Love Story. "Pesquisamos quanto custa uma versão nova e uma usada dessa toalha no mercado."
Copo meio cheio
A dívida da casa noturna é estimada em R$ 1,7 milhão. A Justiça de São Paulo decretou a falência da balada em 10 de fevereiro. Quando o leilão começou a ser divulgado, no final de abril, a lista com os objetos da Love Story circulou por grupos de WhatsApp. É fácil entender o apelo de alguns deles, como os equipamentos de som e os letreiros capazes de dar uma aura "cool" até para um escritório da Vila Olímpia. Mas? Cinzeiros? Bebidas abertas? Garrafas "decorativas" com água? Caixa de gelo sem tampa? Totem de álcool em gel? Precisava mesmo incluir tudo isso?
"Chegamos aqui às sete da manhã e ainda tinha gente saindo de uma festa. Limpamos o espaço, lacramos do jeito que estava e listamos o que tinha aqui dentro", conta Piva. É um procedimento padrão, em casos como o da Love Story. O imóvel é lacrado imediatamente para evitar que alguém leve algo de valor. Isso explica a presença de objetos com pouco ou nenhum valor comercial. Alguns sequer foram listados. É um raio paralisante a serviço da justiça e do trabalhador lesado. Se, por alguma razão, um cliente esqueceu a cueca em um dos banheiros da Love Story, é possível que a peça seja leiloada.
João Carlos Valença passa o dia todo encarando frases luminosas como "Dont kill my vibe" e "miga sua loka!", barras de pole dance e espelhos, nos quais o único reflexo de um ser humano é o dele mesmo. Ele é o segurança responsável por resguardar o patrimônio da boate. Aparenta ter por volta de 50 anos. Alto e esguio, tem pompa de mordomo britânico. "O chato é que não tem barulho nenhum", brinca, dando a entender que preferia o balanço dos velhos tempos. "Já conhecia aqui. Sempre passava em frente de madrugada e via aquele movimento danado. Mas, assim... Nunca frequentei."
Além do guarda solitário, os únicos vestígios de presença humana no local estão nos detalhes. São itens pessoais ou desimportantes de pessoas que frequentavam e trabalhavam na casa noturna. Objetos foram abandonados como se o lugar tivesse enfrentado uma evacuação de emergência.
No hall de entrada onde tanta gente barganhou descontos para entrar na "casa de todas as casas", restam uma caixa de veneno para baratas e uma chave de fenda sobre o balcão. Na parede, uma reportagem emoldurada lembra a época em que era impossível falar sobre a noite paulistana sem mencionar a Love Story. Logo abaixo está uma cesta cheia de camisinhas que aguardam o uso adequado, caso não percam a validade.
O bar do piso inferior ainda exibe garrafas de vodca, gim e tequila pela metade. Eram bebidas compradas e reservadas por clientes específicos e ainda têm guias com seus nomes. "Dr. Rubens." "Rafael."
No mesmo bar, também ficou para trás um desenho de 13 pessoas. São caricaturas, provavelmente de antigos funcionários. O nome de cada um está ali indicado. No andar superior, uma maçaneta usada como cinzeiro ainda guarda cinzas. Talvez, as do último cliente a burlar a lei antifumo.
Mas é no espaço reservado aos funcionários que jazem os despojos desprovidos de glamour. Na pequena sala no andar dos camarotes, a película usada para escurecer as janelas está descascando. Já não segura a luz do sol, que ilumina uma rosa esturricada que alguém ganhou de presente e largou ali. Os armários ainda guardam alguns pares de sapatos.
Alguém esqueceu um tubo de creme hidratante sobre a base de um pole dance.
Na saída, aquele senhor que conhece o pedaço há quase trinta anos olha com expressão de tristeza para as pichações na fachada da "casa de todas as casas". A maior delas diz "Fora Bozo". Ele se aproxima e pergunta: "será que é muito difícil limpar?".
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