Escalada e pixo na madrugada de São Paulo: uma noite com ENERI
De noite, a Praça da Sé parece um anfiteatro do fluxo da cracolândia. Pessoas em situação de rua transitam no clima quente, alguns usuários de crack não disfarçam seus cachimbos, há muitas barracas de camping montadas e as escadas da famosa igreja acumulam dezenas de homens e mulheres com pouca perspectiva.
Ratos, muitos ratos desfilam pelo centro da cidade de São Paulo. Vasculham os lixos e andam tranquilamente com o aval da madrugada, mas em quantidade ainda perdem para as baratas. No meio do cenário está Irene Avramelos, ou ENERI. A pixadora (a adoção do "x" é em respeito aos critérios do movimento, que usa "ch" apenas quando os riscos têm cunho político), tatuadora e artista plástica de 24 anos roda à procura de uma parede. Ao lado de seu companheiro, VG, segue como o curso natural de um rio em um ambiente naturalmente agressivo. Sobre a ação que está para acontecer, afirma: "Vândalo é o governo".
A busca pela escalada -- modalidade da pixação que exige subidas em prédios sem qualquer equipamento de segurança -- começa à 0h30, no marco zero da capital paulista, e segue pelas ruas e paradas: Senador Feijó, Largo São Francisco, rua do Ouvidor, Terminal Bandeira, Santo Antônio, avenida 9 de Julho, ruas Avanhandava, Paim, Frei Caneca, Caio Prado, Consolação, com breve parada na Praça Roosevelt, que acolhe pelo menos duas dezenas de jovens, alguns andando de skate, outros bebendo. A pandemia parece não existir. São quase 2h da madrugada.
Neta de imigrantes gregos e batizada em igreja ortodoxa, Irene cresceu, e ainda mora, na região do Brás, rodeada de fábricas, galpões e lojas — a da família, inclusive. "É um ritmo muito frenético que você acaba vivendo desde criança. A rua nunca é um lugar seguro para você estar, porque você tá no meio do Brás, então foi uma vivência louca. Você não vê criança jogando bola na rua, não vê nada disso." Criada pelos avós, cresceu respirando cultura, música, culinária e língua gregas. "A maior parte da minha família mora lá."
A dupla segue na saga, entre muitos ziguezagues, até um Parque Dom Pedro 2º quase deserto, à exceção dos ratos. Ela estuda o entorno, analisa como vai subir, como vai descer, quanto tempo vai demorar para realizar o trabalho. Serviço pragmático. Fotografa o local, marca a localização e recorre ao Google Earth.
Todos os lugares programados para a noite apresentam algum empecilho. Os mais comuns na vida dos pixadores são os moradores em seus apartamentos, com janelas acesas e acordados, além de seguranças e a ronda da Polícia Militar. "O maior perrengue é quando você não consegue fazer. Quando você passa por toda a situação, já tá no meio da escalada, dá alguma merda e você tem que descer, não chega nem a fazer. Isso é o mais foda."
Não é do agrado
A avenida Rangel Pestana está silenciosa, caminho aberto para a zona leste. Já são mais de 10 quilômetros percorridos e nenhum risco na parede. As latas de spray, que têm bolinhas de gude dentro, balançam nas costas de ENERI. São seis anos rodando pela cidade, rotina que não é do agrado da família. "Se eu estivesse na faculdade de artes reproduzindo uma arte europeia, estaria sendo aceita. Mas, como eu tô fazendo uma arte originária daqui, ela não é bem aceita?"
"As pessoas se esforçam muito para entender a arte abstrata, a arte surrealista que veio de fora, mas se esforçam pouco para entender os movimentos que são gerados aqui", prossegue. Mas reitera. "Família: A preocupação deles é totalmente legítima. Eu entendo total."
Tão eficaz quanto a discussão sobre o ovo e a galinha, há um debate sobre a pixação ser arte ou vandalismo. ENERI entende que não precisa deixar de ser arte para ser vandalismo, não precisa deixar de ter um debate cultural para ser arte. Tal discurso mostra também uma mudança de postura em relação aos pixadores mais antigos, que em sua maioria escondem rosto e identidade. "Nunca fui uma pessoa de ficar me escondendo. Nem escondendo a minha fisionomia, nem escondendo o que eu faço. Eu pixo e é isso, não tô fazendo mal pra ninguém, é minha forma de me expressar. Faço porque acho bonito, não é pra agredir necessariamente quem mora ali."
De todo modo, a lei brasileira entende que a pichação no Brasil é considerada vandalismo e crime ambiental — riscos e rabiscos em muros e paredes são vistos como "transgressores" pela lei, e a pena para quem comete o ato vai de 3 meses a 1 ano, com multa.
Irene Avramelos tentou carreiras mais formais. Trancou a faculdade de psicologia com dois anos e meio de curso, foi trabalhar como garçonete para fazer um dinheiro e, no fim das contas, decidiu fazer curso de artes, porque "acabou sendo a única coisa que me gerou interesse e prazer". Cursou outros dois anos, mas trancou recentemente por não gostar da aula à distância e também por contenção de despesas. Uma forma de fazer renda é a venda de camisetas com estampas feitas em parceria com o companheiro e prints de fotos tiradas durante as escaladas.
Uma das vivências mais intensas para os pixadores é o point, local de encontro para a troca de ideias, referências e técnicas. Foi lá que ela desenvolveu seu "letreiro" e evoluiu. ENERI elenca suas inspirações. "A Jack Parceiros é minha maior referência dentro do movimento, porque na escalada ela foi a primeira a começar a subir mais alto."
Apesar de apontar uma referência feminina, Irene sabe que está em um ambiente masculino. "A gente vive numa sociedade machista e em qualquer meio que a mulher se inserir ela vai enfrentar situações de machismo. Na pixação não vai ser diferente." Conta que já recebeu mensagens de caras sugerindo um ensaio nu com escalada. Ela rebate com: "Não faz sentido. Seria extremamente doloroso escalar pelada. Vai lá escalar você".
Ação feito balé
Já são mais de 3h30 da madrugada e uma luz acesa num prédio frustra os planos para a noite. Fim da linha? O casal pensa um pouco, avalia outros endereços e toma a decisão: Uber para o Belenzinho.
Um dos endereços na lista dos cobiçados aparece no horizonte. Uma rua que sempre está tranquila hoje é cenário para um apaixonado casal que conversa carinhosamente, embaixo do poste de luz. Para não dar na cara, o casal dá uma volta, analisa outras opções e quase dá a noite como encerrada. No relógio já são 3h45.
O casal some por alguns minutos e há uma brecha. Hora da ação. Separam duas das oito latas da mochila, colocam os bicos e escondem o restante das latas. Ela, que usa calça de ginástica e um top, tudo preto, coloca o celular e a lata entre a calça e o próprio corpo para ter as mãos livres para os movimentos.
Eles atravessam a rua com a mesma confiança com que cruzam o centro da cidade cercados de ratos, e sincronizam os próximos passos como um balé. Ele faz um breve agachamento, ela escala seu corpo e sobe na primeira grade. Ele a alcança e a cena se repete quando eles já estão a quase dois metros de altura. Ele se segura na grade do imóvel abandonado, ela escala seu corpo e alcança o segundo patamar. ENERI desce o pé direito, ele usa sua perna como apoio e escala para o segundo andar ao seu lado. Ele ainda faz uma passagem, a mais de cinco metros de altura, para outra janela.
Os sprays começam a apitar às 3h54 e duram 12 minutos. Carros passam ao lado e não enxergam a dupla. "Eles nunca olham pra cima", ela diz. Depois de marcar seu nome invertido, ENERI, e seu companheiro registrar o seu, "CATADOS", repetem o balé e voltam para o solo. Seus rostos exalam adrenalina e confiança.
Eles voltam para a avenida Rangel Pestana numa longa caminhada até em casa, quase na hora de o sol dar as caras. No caminho analisam outras possibilidades e novos picos. Passam o caminho inteiro lendo as paredes e reconhecendo, de forma codificada, seus pares. É mais uma noite comum para ENERI. Mais uma noite comum na cidade de São Paulo.
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