Rolimã: praticantes descem ladeira a milhão com corpo a três dedos do chão
Algumas atividades humanas obedecem convenções não escritas. É o caso de quem desce ladeira deitado num carrinho de rolimã e assina um termo de concordância com o risco. Peito três dedos acima do asfalto, ausência de freio e velocidade beirando os 50 km/h. Os olhos veem o chão passar rápido, como a câmera que vai no bico dos carros de Fórmula 1.
Mais que a sensação de velocidade é a aceleração que chama a atenção. No primeiro instante, o rolimã se arrasta, parece que não vai vencer a inércia. No segundo seguinte, a impressão é de queda livre. O corpo sente cada ondulação do asfalto e o corajoso repassa mentalmente as instruções para sair ileso da aventura. Quando a descida acaba, o atrito do ferro no asfalto fica zunindo na cabeça. O barulho lembra uma chuva de granizo muito intensa. Nessa hora, a pessoa percebe que o coração está a milhão. Quem gosta de adrenalina se esbalda.
A mais tradicional ladeira de São Paulo fica na rua Conceição Pereira, no bairro da Penha, na zona leste. No local, corajosos se atiram morro abaixo desde 1986. O lugar tem a vantagem de ser uma descida íngreme, seguida de uma leve subida, o que ajuda na desaceleração. Mas o trecho final não é suficiente para parar o carrinho. O método de frenagem é tão arriscado quanto o trajeto.
O piloto vira bruscamente o eixo da frente do carrinho, que começa a girar com força. A energia do movimento é tamanha que saem faíscas do rolamento arrastando no asfalto. A forma como a ladeira de 430 metros é usada revela a prioridade dos frequentadores: eles só freiam nos 20 metros finais.
Subida com emoção
Este templo do rolimã localizado na Penha é ocupado somente aos domingos. Havia 18 pilotos de carrinho no último domingo (2) e todos tratavam Thiago Mendes da Cunha, 35, como o presidente. Ele é o cara que chama todo mundo na roda antes da primeira descida e faz o discurso.
Naquele dia, Thiago comemorava a volta da brincadeira — estavam parados havia 60 dias por causa da segunda onda de covid-19. Ele terminou a fala desejando diversão e segurança, puxou um Pai-Nosso e uma ave-maria, repetidos no mesmo ritmo dos jogadores de futebol no vestiário, antes de subir a campo.
Thiago explica que os praticantes de rolimã possuem uma diferença e uma semelhança. "Tem gente que está aqui para relembrar a infância e gente que quer viver o que não teve na infância. O que une a gente é que todo mundo é louco."
A descida dura 20 segundos e depois há uma ladeira íngreme para subir. Quebrada não é montanha de esqui na Suíça, com teleférico para levar as pessoas para cima, mas dá-se um jeito.
Nos dias de sorte, um vizinho, dono de uma Fiorino, faz o carreto só pela grana da gasolina. Ele não estava no último domingo e a subida provou que também pode ser com emoção. Os carros dos praticantes escalavam o morro com duas pessoas na frente, três atrás, duas no porta-malas e um rebocado.
As pessoas que iam no porta-malas seguravam uma corda e o oitavo passageiro ia fora do carro, deitado no carrinho, arrastado morro acima. Por razões óbvias, o motorista dirigia devagar. Tem vez que os skatistas também dão um jeito de aproveitar a carona.
CET de favela
A descida da ladeira da Conceição Pereira começa às 14h30 de domingo porque o trânsito é muito menor a partir desse horário. Mas não dá para conceber uma rua completamente sem carros em São Paulo. Para garantir que a aventura não termine em tragédia, os pilotos de rolimã tem agentes de trânsito particulares.
Um homem fica na parte de baixo com walkie-talkie e se comunica com outro no topo da ladeira. As descidas só começam depois da permissão deles. Anderson Zschachner, 37, era o marronzinho no topo do morro.
"Eu cuido da segurança da descida me comunicando com o mano lá embaixo. Parei de descer dois anos atrás depois de esfolar as costas inteiras e hoje dou uma força. Sou CET de favela."
Anderson leva a função a sério. Fala com tanta energia no walkie-talkie que parece que o equipamento poderia ser desligado e ainda assim sua voz seria escutada lá no fim da ladeira. Além da dupla nas extremidades, o setor de engenharia de tráfego do rolimã conta com uma dupla nas duas esquinas das ruas que cortam o miolo da ladeira.
Nesses locais são colocados cones e faixas listradas visíveis de longe, fazendo os motoristas diminuírem a velocidade. A dupla que fica na esquina avisa que tem gente descendo, deitada num carrinho de rolimã. Existe quem não gosta de esperar um minuto, mas ninguém desobedece. Seria tragédia certa.
Reclamações da vizinhança
Uma porção de moradores da Penha cola na parte final da ladeira para assistir às descidas e jogar conversa fora. Os donos de algumas casas ao longo da ladeira ficam no muro observando. Mas Thiago não esconde que alguns vizinhos reclamam dos carrinhos de rolimã.
Ele diz que todo domingo a Polícia Militar aparece porque recebeu uma denúncia. O roteiro é sempre o mesmo. Os policiais verificam se a via continua aberta, pedem para ter cuidado na descida e orientam a usar máscara e não aglomerar. A lição dura 10 minutos e a diversão recomeça.
Uns descem com apenas uma mão no eixo, outros vão de carona no carrinho alheio e os mais ousados tentam dar três voltas na parte final do morro e completar 1.080º. A mãe de Giovani Moretton, 40, fica em casa rezando. Ele entende a preocupação porque a graça do rolimã é justamente a emoção do perigo.
Com tanta exposição ao risco, a escolha do equipamento de proteção é individual. Há praticante que usa bota, luva, capacete e macacão grosso e fica parecendo um piloto de caça. Outros descem de tênis, bermuda e sem camisa, figurino que não lembra em nada Tom Cruise no "Top Gun".
Entre os 18 carrinhos levados à ladeira no domingo passado, apenas dois tinham um mecanismo de freio. Mas havia um praticante com uma borracha grossa no peito do pé. Como ele vai deitado, pode diminuir a velocidade. Outra opção é colocar borrachas no antebraço, que cumprem a mesma função.
Controlar a velocidade é necessário porque o rolimã pode ir bem rápido. Thiago contou que certa vez uma moto emparelhou com o carrinho e ela precisou chegar a 45 km/h para não ficar para trás. Outros pilotos falam que usaram o mesmo sistema e já pegaram 60 km/h.
Hot wheels
A diferença de velocidade e de estilos é enorme no rolimã. Leandro Soares, 36, estava com cabelo punk em alusão aos Ramones. "Tem que fazer enquanto tem cabelo. Daqui cinco anos você não sabe se vai ter cabelo e se vai poder ter estilo."
Bruno Lourenço, 34, tem uma tatuagem em referência à ladeira nas costas. Ele conta que sentiu tanta falta das descidas na primeira onda da pandemia, em 2020, que resolveu gravar no corpo o quanto gosta das tardes de domingo.
Mas mesmo no ambiente de desafio, há limites. Thiago explica que novatos menores de idade não podem descer sem autorização de um adulto responsável. Também é proibido extrapolar as 18h para não gerar mais reclamação dos vizinhos.
No mais, é praticar a boa convivência. O rolimã criou a cultura de esporte radical na ladeira Conceição Pereira. Hoje, eles têm companhia do povo das bikes, motoqueiros que dão grau e, principalmente, de skatistas.
Além de estar em maior número, esses últimos partilham a ousadia. Com luvas embaladas de plástico resistente, eles arrastam as palmas das mãos e o capacete no asfalto. Estão expostos aos mesmos riscos que o rolimã, mas Thiago garante que o apelido de "ladeira da morte" é lenda.
"Ninguém nunca morreu aqui. Mas um raladinho sempre acontece. Todo domingo tem. Joelho e cotovelo que o digam."
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