Professor e candidato a prefeito, coveiro de MG tira lições sobre a morte
Para Breno de Oliveira Dutra Baeta, 27, cemitério é memória e morrer também é um ato social. O jovem coveiro leva o trabalho a sério e de maneira profissional, assim como o ofício de ser professor de sociologia no colégio estadual na cidade.
"Dentro e fora dos muros de cemitério, a lógica social e a cultura são as mesmas", analisa. "Fazendo a exumação, é possível entender isso melhor: encontro bandeiras, dentes de ouro, símbolos, indícios de como aquela pessoa morreu ou foi velada", afirma. Por fim, arremata sua tese. "Para as pessoas aqui na cidade de Cristiano Otoni (MG), ser enterrado em uma cova é sinal de pobreza. Por isso, temos os túmulos".
No último feriado de Corpus Christi, ele acordou mais cedo do que de costume. Pelas redes sociais, tomou conhecimento que Dona Quinha tinha morrido. Correu até o cemitério para recepcionar alguns familiares e instruí-los sobre a burocracia do sepultamento e as taxas de serviço.
Enquanto emitia uma nota fiscal simples, explicou que aquele era um dia atípico, porque seria preciso construir do zero uma nova sepultura para a família, tendo em vista que o outro túmulo estava ocupado a menos de um mês.
Diante disso, foi preciso chamar mão de obra especializada: o pedreiro "Chinês", 55, e o ajudante "Seu Noberto", 70. Ambos já trabalharam como coveiros na cidade. A diária dos dois, bem como todo o custo do material de construção, fica por conta dos familiares. Enquanto pedreiro e servente iniciavam a construção do túmulo de Dona Quinha, Breno correu de volta para casa para tomar café da manhã. Eram 10h e ele não tinha comido nada.
Em casa, recebia ligações e respondia pelo WhatsApp aos moradores que gostariam de confirmar a veracidade da informação que movimentou a cidade naquele feriado. Breno também lamentava o fato da sua vizinha — grande amiga da sua avó — ter morrido. "Dentro do contexto em que vivo, município de 6 mil habitantes, ser coveiro é também uma liderança", comenta. "O homem é representado pelo seu ofício. Isso é kafkiano, né?", menciona seu autor favorito. "Sou mais conhecido como Breno Coveiro do que o Breno da família Dutra Baeta.
A reflexão filosófica é interrompida. O agente funerário Edmilson entra em contato para lhe passar as medidas da urna. A informação era importante para Breno. Por se tratar de um corpo obeso, o caixão seria um pouco maior. Dessa forma, era preciso dimensionar corretamente a construção do túmulo.
Chinês e Seu Noberto executaram tal trabalho das 8h30 às 14h30, sem parar. Almoçaram pastel frito. Com 300 tijolinhos, dois sacos de cimento e seis carrinhos de areia peneirada estava pronto o jazigo de Dona Quinha.
Vida de coveiro
Para trabalhar, Breno usa uma calça jeans puída, botas de borracha que vão até a canela e veste uma camisa cinza de manga longa. Os óculos são de lentes que se adaptam à irradiação solar. A vermelhidão na testa e na ponta do nariz dão sinais da exposição prolongada da pele ao sol.
Sua jornada é das 8h às 16h, e ele cuida de dois cemitérios municipais. O maior, de 5.000 m², fica na cidade. O outro — dez vezes menor — fica a 15 km dali, na parte histórica do Distrito de São Caetano.
A idade de Breno e o estilo de quem curte heavy metal chamam atenção. Ele cultiva uma barba grande e comprida. No braço e antebraço, tem tatuagens do disco "The Wall" do Pink Floyd e do rosto Ozzy Osbourne, do Black Sabbath. Na lateral da perna esquerda, o desenho do crânio de uma caveira.
Breno diz gostar de quebrar estigmas — e mostrar que coveiro é uma pessoa comum. Para ele, a estrutura e realidade de muitos cemitérios é a mesma há 100 anos: abandonados, sem planejamento, quase depósitos de corpos. Preocupado, explica a realidade de outros colegas de ofício. "Existem relatos muito tristes de coveiros que são viciados em álcool, que precisam ter algum refúgio para compensar o fato de serem coveiros. Não era para ser assim, era para ser leve, como qualquer outra profissão", afirma.
Questionado sobre o que pensa do Brasil estar próximo da marca de 500 mil mortos pela covid-19, ele olha para as criptas ao redor e diz não saber se seria covarde dizer isso, mas é como se a ficha ainda não tivesse caído. "Estourou uma pandemia e até hoje estamos aí, vivendo uma picuinha de brigas políticas. E nada acontece. Vacina que é bom, nada. É um pouco assustador. Eu não teria nada racional para lhe dizer neste momento, não".
Quase padre e quase prefeito
De família católica, Breno fez primeira comunhão e crisma. Mas foi a liderança e engajamento social do padre local que lhe serviram de espelho e inspiração. Por isso, aos 19 anos, foi para Campinas (SP) estudar para ser padre. A vida de seminarista durou apenas um ano e meio.
De forma reservada, ele usa um eufemismo para narrar que os padres lhe convidaram para se retirar. Fato é que Breno teve um caso amoroso com uma moça da região. Voltou pra casa no mesmo dia em que começou a Copa do Mundo de 2014.
Daquele tempo, guarda aprendizados e experiências inesquecíveis, como o dia em que pôde conhecer o Padre Quevedo; de recepcionar Frei Betto e de lhe perguntar histórias sobre a Ditadura Militar e a convivência com Frei Tito.
De volta à terra natal, cursa graduação em Ciências Sociais pela Uemg (Universidade Estadual de Minas Gerais) em Barbacena, cidade a 54 km de Cristiano Otoni. Quando passou no concurso público para ser o único coveiro da cidade, os amigos e familiares riram, fizeram piada e acreditavam que aquilo não daria certo. Já está no ofício desde 2016. Filho único, afirma que sempre teve apoio do pai e da mãe.
Ele revela que sua motivação inicial era o conforto de ser concursado, bem como vantagem trabalhar poucas horas, tendo em vista que as demandas eram menores do que são hoje. Em mais de um ano e meio de pandemia, viu a média de três a quatro sepultamentos no mês ser batida a cada semana.
Foi também nessa cidade pequena, de 6 mil habitantes, que Breno nasceu, cresceu e aspira ser prefeito. Único coveiro do Brasil candidato ao cargo no pleito de 2020, ele conta que se lançou candidato para se opor ao que chamou de "oligarquias da cidade". Diz que buscou vários partidos para se filiar e obteve sinalização positiva apenas do Patriotas.
"Não sou Bolsonarista!", se adianta, em tom incisivo. "Mas foi a única legenda que me respondeu autorizando minha candidatura". Por ironia do destino, descreve que foi xingado de Bolsonarista por alguns eleitores, porque defendeu, entre outras ideias, uma renovação na política. "Dá pra acreditar?". Segundo dados do TSE, ele gastou cerca de mil reais nas eleições e obteve aproximadamente 30% dos votos válidos.
Breno é popular. Circular com ele pelas ruas e estradas de terra de Cristiano Otoni é vê-lo dando um toque na buzina para cumprimentar moradores. Quando não, alguns munícipes lhe puxam de conversa para reclamar de algo da política local ou de algum serviço da prefeitura. Nisso, dá até para pitar um cigarro rapidamente e saber das boas novas.
Mas não é só ali que ele é conhecido. Presente nas redes sociais, ganhou visibilidade anos atrás, quando pregou uma placa com o nome do cantor Ozzy Osbourne dando nome ao cemitério municipal. A 'homenagem' viralizou a tal ponto que ele virou notícia — e teve oportunidade de ficar frente a frente com astro em Belo Horizonte.
Mais recentemente, ao terminar de abrir uma cova, postou uma foto vestido com uma camisa do Sepultura. Um dos integrantes da banda retuitou a postagem e ela ganhou dezenas de seguidores em um único dia. Desde o episódio, conta que atualizou seu perfil no twitter para "influencer de cemitério".
O Sepultamento
Para um dia de Corpus Christi sem procissão de Igreja, o velório de Dona Quinha parecia cumprir tal ritual litúrgico. Eram 16h e o carro da funerária vinha subindo a ladeira da Rua 2 de Novembro em marcha lenta. Amigos e familiares andavam a pé.
Breno se posicionou na entrada do cemitério como um anfitrião. Começava ali, como ele já sinalizara, os dez minutos de tensão: da entrada do caixão no local até o seu sepultamento.
Ele se adiantou, foi até o motorista do carro da funerária e lhe deu orientações para estacionar de ré na entrada. Depois, voltou à guarda como uma sentinela. Compenetrado, balançava a cabeça retribuindo a saudação de quem lhe cumprimentava. Um homem estendeu as mãos e retribuiu o álcool gel. Cerca de 50 pessoas iam entrando, algumas delas fazendo o sinal da cruz ao pisar no cemitério.
O jovem coveiro apressou o passo, cortou caminho por entre vielas de 25 cm dos túmulos e se posicionou para recepcionar o caixão. Os parentes de Dona Quinha vinham trazendo o esquife. Era outro momento de tensão — colocar a urna funerária dentro do túmulo.
A tábua de madeira deitada no chão servia como esteira para o caixão deslizar para dentro. Breno pegava uma cavadeira de aço, apelidada de 'milagrosa', e fazia o movimento de alavanca. Os homens faziam força e tudo acontecia muito rápido. O jazigo, antes vazio, agora estva ocupado.
O filho de Dona Quinha tocou o caixão pela última vez, fez o sinal da cruz e disse: "Vai com Deus, minha mãe". Era a última despedida. Neste ínterim, foi a vez de Seu Noberto entrar novamente em ação. Ágil e compenetrado, enfileirou os bloquinhos de barro e foi assentando massa como quem fazia uma prova. Enquanto isso, o cemitério se esvaziava muito rápido.
Breno desceu a pé até o velório e trancou tudo. Voltou e lavou as ferramentas com a mangueira. A água desceu a terra batida escorrendo sem qualquer direção. Duas coroas de flores deitadas sob o túmulo de cimento ainda fresco davam mais cores àquele final de tarde. "Vai com Deus, Dona Quinha'', gritou Breno fazendo o sinal da cruz. "Que assim seja", respondeu Seu Noberto. "Mais uma missão cumprida", finalizou o ajudante.
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