'Vejo muito colega trabalhar em troca de comida', diz locutor de loja
"Venha conferir!", "pode chegar!", "promoção relâmpago!", "explosão de ofertas!", "o gerente enlouqueceu!". A caixa de som dispara ordens e organiza o desejo de quem passa pela Estrada das Lágrimas, na zona sul de São Paulo.
Júlio César Pequeno, 36, já nasceu com a profissão dentro dele. Mais especificamente dentro da boca. Até demorou muito para descobrir as vantagens financeiras de seu vozeirão. Só assumiu a vocação há dois anos. Comprou amplificador, microfone e saiu se oferecendo como arauto dos descontos no comércio de Heliópolis, a maior favela da cidade.
É o sétimo ofício de sua vida, depois de ser vigilante, motorista, técnico de enfermagem, operador de caldeira, líder de produção e bombeiro civil — este último é seu principal ganha-pão na atualidade.
Sonha acrescentar mais uma carreira ao currículo: radialista. O timbre aveludado cairia como uma luva para aqueles programas da madrugada povoados de canções melosas e juras de amor dos ouvintes. "Minha voz era mais grossa antes de fazer operação nas amígdalas, em 2016. O pessoal diz que agora ela está melhor ainda."
Ele imagina usar a voz em projetos futuros tão diferentes como ser dublador ou trabalhar em carro de som. Enquanto isso, Júlio é uma estrela nesse labirinto comercial de calçadas, estacionamentos, vitrines, balcões e gôndolas.
Mestre em sevirologia
"Tinha tudo para desandar na vida. Imigrante, pobre, vindo de família desestruturada, com um monte de amigos indo pro crime, pras drogas. Botei na minha mente que, de qualquer jeito, eu me viro. Quero ser tudo, menos vítima da sociedade."
Júlio César tem uma história bem particular dentro da narrativa parecida a milhões de brasileiros. Ele foi batizado com o nome falso de seu pai. Sua mãe o conheceu em uma festa, tiveram um romance, ela engravidou, e ele desapareceu. A criança acabou registrada como filho dos avôs, o que criou uma confusão familiar, com o menino constando como irmão de sua mãe e tio de seus futuros irmãos.
Com o "neto-filho" no colo, seu avô procurou e achou a casa do pai biológico. Só que não havia nenhum "Júlio César" por ali. O nome verdadeiro era Servílio Sena. Casado e com filhos, ele reconheceu logo suas feições no rosto do moleque, mas não reconheceu no cartório sua paternidade.
Pouco tempo depois, a família de Júlio trocou Natal (RN) por Itaquaquecetuba, município da Grande São Paulo. O "avô-pai" morreu, a "mãe-irmã" casou e voltou para o Nordeste. "Com 12 anos, eu era o único homem da casa. Comecei a trabalhar em um lava-rápido para ajudar minha avó e minha tia em casa. Aí não parei mais."
Ele trabalhou em uma fábrica de brinquedos e em outra de alimentos. Cuidou de idosos em casa de repouso. Foi motorista de Uber por dois anos, até ser assaltado e desistir. Esse era o bico que complementava seu salário de bombeiro em um shopping center paulistano, para ajudar a sustentar mulher e filho de sete anos e pagar o apartamento novo que comprou. Agora a locução cumpre esse papel.
Mais grave, mais agudo
De tanto ouvir que tinha voz bonita, Júlio se convenceu e em 2019 foi à rua Santa Ifigênia, paraíso dos eletrônicos no centro de São Paulo. Comprou os equipamentos e encomendou cartões de apresentação para distribuir para os lojistas: antes de falar em "show de promoção", ele precisava primeiro se autopromover.
A chance veio como folguista do locutor de uma loja de chocolates. "Ele me ensinou a falar pausadamente, puxar bem os 'erres' e não engolir os 'esses'. Também me alertou para não trabalhar mais de cinco horas: a gente vai ficando rouco e pode perder a voz."
Na função de "animador urbano", vale tudo: açougue, supermercado, ótica, farmácia, cabeleireiro, hamburgueria, concessionária, clínica médica, restaurante e até empreendimento imobiliário.
Trabalhando principalmente nos fins de semana, Júlio cobra R$ 300 pela diária, mas negocia e baixa para R$ 200 se o comerciante fechar vários dias de serviço. Segundo ele, as vendas aumentam por volta de 30%, e os lojistas lucram pelo menos dez vezes mais do que pagam para o locutor na porta — se não for assim, dispensam logo o porta-voz dos saldões.
Quando a pandemia começou, Júlio viu os chamados desaparecerem. Só teve novas oportunidades em 2021, com períodos mais longos de abertura do comércio. "Nessa crise, várias lojas fecharam, e vejo muito colega trabalhar em troca de comida. Se é a única fonte do cara, ele acaba se sujeitando a isso pra alimentar a família."
O intervalo comercial
A maior parte da publicidade sonora pode ter migrado para o rádio, a TV e o celular, mas ela sobrevive nos bairros populares no versinho do feirante, na vinheta do ambulante e nas locuções em porta de loja. O consumidor da classe A não gosta nem de panfletagem, mas os compradores das classes C e D estão acostumados com a constante abordagem.
"Tem que improvisar, brincar. Se está chovendo, a gente fala de 'chuva de ofertas'. Se vejo uma mulher grávida, anuncio desconto nas fraldas. Quem passa, eu chamo para a loja. E, para quem sai, eu agradeço a preferência."
Júlio se apresenta como o "Van Diesel de Heliópolis" e planeja acrescentar uma veia humorística em seu trabalho. "Outros locutores fazem imitação e usam fantasias para animar inaugurações e lançamentos. É um filão que ainda vou explorar, e eu estou me preparando."
Júlio diz que a concorrência é grande entre os locutores, mas é leal. "Se vão trabalhar na mesma calçada, quem chega primeiro fica. O outro vai para uma filial ou espera sua vez. Se não for tão perto, é só ajustar os volumes, e todo mundo consegue trabalhar."
Além de concentrar os chamados dos comerciantes, o celular é um auxiliar da locução. Nele, Júlio digita os preços que tem de ler e anunciar. Pareadas com a caixa de som, as músicas armazenadas nele fazem o "sobe som" para Júlio tomar um fôlego. O comercial ao vivo tem seu intervalo, para poupar a voz. "Sem água e balinha, não dá para trabalhar. Uma vez fiquei rouco, parei a locução e nem quis cobrar do lojista."
O mercado de novidades
Com a eterna dicção empostada, Julio vai relatando sua história, entre episódios familiares e profissionais. Conta como conheceu Luciana em uma estação de trem, como foi morar em Heliópolis no terreno da família dela, como nasceu seu único filho, Caio César, e como uma embolia pulmonar depois do parto quase custou a vida de sua mulher.
Narra suas desventuras no trabalho, como furto de seu celular enquanto fazia intervalo para o almoço durante uma locução diante de uma farmácia. "Eu voltei, e o amplificador estava silencioso. Achei que era um mau contato. Depois vi minha mochila revirada e sem o celular. É revoltante quando roubam seu instrumento de trabalho."
Ele vai falando como é a luta para promover as mercadorias e o seu próprio trabalho, e isso me lembra como, atualmente, as pessoas viraram produto, marca e anunciante de si mesmas — é o tal do "self-branding", termo bonito em inglês que esconde por trás uma realidade de índices gritantes de desemprego e de exposição pública pelas redes sociais.
Escrevendo a reportagem vou-me identificando com Júlio. Termino o texto, meu artefato, e tenho de pensar em uma manchete, que é como um slogan. Na sequência, devo publicá-lo na seção do TAB como quem coloca em uma prateleira. Ato contínuo, assino a notícia, imaginando meu nome como uma espécie de grife. Insiro as imagens para adornar. O passo seguinte é "vender para a home", ou seja, avisar aos editores da página de entrada do UOL, a vitrine principal, sobre o texto em que estive trabalhando.
O jornalista não gosta de ser confundido com o publicitário, em um orgulho de ofício sintetizado na clássica frase: "jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique, todo o resto é publicidade". Mas vivemos numa época em que tudo é empacotado como produto, inclusive os fatos, e a quase totalidade da comunicação humana é alguém querendo vender algo para você. Estamos todos nessa lógica. Talvez Júlio, como boa parte dos brasileiros que correm diariamente pela sobrevivência, tenha isso mais claro — e saiba há muito tempo.
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