Com miséria crescente, famílias de pedintes rondam supermercados e shopping
Os supermercados têm estoquistas, repositores, caixas, empacotadores e, nos últimos tempos, famílias suplicando por mantimentos para os clientes na saída. A miséria cresceu tanto no Brasil que ronda também os shopping centers.
"Aqui rende bem", diz Tainá Alves, 27, com um sorriso no rosto e uma de suas quatro crianças no colo. "Já pedi no centro, no Brás, Santa Cecília e Santa Ifigênia, mas aqui é o melhor", conta ela, que pedia nas proximidades do Shopping Frei Caneca, no bairro da Consolação.
A tradição era os mendicantes se reunirem fora das igrejas, para aproveitar o espírito cristão de caridade. Agora é melhor ir aos templos do consumo. Uma das razões é porque as pessoas não andam mais com moedas no bolso. Até apareceram alguns pedintes com aquelas maquininhas de crédito ou débito, mas a moda não pegou.
Como o dinheiro se plastificou nos cartões, a solução é pedir comida diante dos grandes comércios. Se tiver criança, recebe mais. Se for homem, recebe insulto.
"Meu marido deixou de pedir porque xingam: 'vai trabalhar, vagabundo, fica aí explorando criança'. Ele se sente muito humilhado. Ele é pedreiro, mas não consegue trabalho. Agora ele só fica de longe, de campana, pra nenhum nóia tomar minhas doações", conta Andréia de Paula, 28 anos de idade e há três meses nas calçadas próximas à avenida Paulista com as três filhas.
Ponto estratégico
A lixeira do prédio vizinho é o espaço mais disputado pelos pedintes: é do lado das rampas de acesso ao shopping Frei Caneca. Tainá diz que não tem briga. "Quem chega primeiro, fica. Tem vários supermercados na região pra ir", explica.
Ela ocupa a parte de baixo da pirâmide social e da calçada. Dia sim, dia não, ela está sentada naquele chão, com o carrinho de bebê virando carro de carga para as doações. Quando enche, volta pra casa, descendo as ribanceiras que levam ao bairro da Bela Vista. A duração do expediente depende da generosidade alheia. Pode durar de duas a seis horas.
No retorno, passa em frente da lotérica onde seu marido, Lucas, está vendendo bala, com outra filha no colo. Garçom desempregado, ele "não tem coragem de pedir". Há um mês, eles moram em um prédio invadido. "Tinha uma placa de 'aluga-se' faz tempo. A gente arrancou e entrou. Ninguém reclamou até agora."
Tainá sonhava em ser jogadora de vôlei. Aos 16 anos, brigou feio com a mãe e saiu de casa. Foi morar com uma amiga e começou a panfletar na rua para ajudar no aluguel. Aos 18 era mãe, veio a escadinha de filhos (quatro) e começou a pedir na rua seis anos atrás.
"Com tanta criança, não dá para trabalhar. Teria que deixar todo o salário para pagar quem olhasse. Aqui posso ficar com elas e já me acostumei", resume.
A dura indiferença
"Se meu pai estivesse vivo, eu não estaria aqui. Ele não deixava faltar nada em casa", lamenta-se a adolescente G.O.S., 15, segurando a irmãzinha de um ano no colo na entrada do shopping.
Ela se emociona ao lembrar a última vez em que esteve com o pai. "Saltei do balancinho da praça e caí. Ele veio e me disse: 'minha princesa, você voou que parecia a Mulher-Maravilha'. Dias depois ele morreu de infarto. Eu tinha oito anos."
O pai tocava um lava-rápido em Guaianases, bairro da zona leste. Depois da morte, uma parente ficou com o local e despejou a família. Ela e a mãe foram morar em uma pensão na Bela Vista, no centro.
Muitos passam por ela sem vê-la — nem a realidade ao redor. "Tem gente que não olha na cara, nem responde. É muito chato ser ignorada. A gente se sente pisada."
A adolescente largou o nono ano fundamental no começo da pandemia para ajudar a mãe. Primeiro vendiam pano de prato na grifada rua Oscar Freire. Depois, a mãe foi recolher papelão, enquanto a adolescente cuidava da irmã e pedia na rua.
Na frente do shopping, ela divide espaço com um pipoqueiro e um cantor, de violão em punho e chapéu no chão atrás de um cachê. O ponto é disputado também por um casal trans, um homem com filhote de cachorro e uma idosa. Os seguranças pedem para sair quando estão atrapalhando o fluxo de clientes nas rampas, mas ela diz que nunca houve entrevero como acontece em outros grandes estabelecimentos.
Zanzando por Higienópolis
Alessandra Miranda, 49, dorme embaixo de um viaduto na Barra Funda. É uma ocupação, com portaria e ligação clandestina de luz e água. Ela e o marido pagam R$ 100 para viverem ali, com filho e os dois netos.
Para honrar os compromissos e sobreviver, ela sai toda manhã em direção a Higienópolis, na região central. O marido puxa carroça, recolhe recicláveis, deixa Alessandra "no serviço" e à noite volta para dar carona para casa.
Dores no braço e na coluna impedem Alessandra de ajudar o marido. "Já fui babá, doméstica. O último emprego foi em uma firma de papelão, que fechou e dispensou todo mundo. Nunca fui registrada", relata. Foi catadora por nove anos. Até que não conseguiu mais e passou a mendigar na frente dos supermercados do bairro nobre.
Quando ficam sem creche, os netos vão junto com ela. Nesses dias, as doações triplicam e o expediente é mais curto, porque "a criançada não pode pegar friagem". Quando se posta sozinha na calçada, fica até às 22h e, se consegue encher uma mochila, já está bom. "Não fico no mesmo lugar dois dias seguidos pro pessoal não falar 'já te dei'. Tenho que zanzar."
Pedinte intermunicipal
"Onde moro é vila. Lá, o povo não ajuda. Depois, eu não quero que as pessoas fiquem comentando. Tenho vergonha se um vizinho descobre que a gente está pedindo." Três vezes por semana, Andréia, seu marido e as três crianças atravessam os 35 quilômetros de distância entre o bairro Pimentas, no município de Guarulhos, e a avenida Paulista, até encher um carrinho de feira com doações e conseguir dinheiro para a condução de volta.
Ela recebe atualmente R$ 375 do Bolsa Família, enquanto o marido tem direito a R$ 150 pelo auxílio emergencial durante a pandemia. Pagam R$ 300 de aluguel por um quarto com banheiro coletivo. Sobra R$ 225 para cinco pessoas viverem.
"A gente montou um barraco em terreno baldio, mas desistiu porque as crianças ficavam muito doentes com tanto frio, mato e bicho. Até rato tinha. Melhor alugar um quartinho. O problema é que não sobra dinheiro para a comida."
Antes de casar e ter filhos, Andréia trabalhava com telemarketing e chegou a estudar um semestre na faculdade de enfermagem. "Não era boa de cálculo, ia mal nas avaliações e tinha que pagar a mais para fazer prova substitutiva. Larguei. Depois vieram as crianças e não conseguia mais voltar."
Logo ao lado, sua filha de dois anos acha que tudo é brincadeira. Dá tchauzinho para os pedestres, aperta uma banana como se fosse massinha de modelar e joga uma uva que caiu no chão e vê a fruta rolar como uma bolinha de gude. Dá um gritinho e abraça a mãe.
A pobreza vai ao shopping
As administrações de shopping centers e supermercados adotam posturas diversas para lidar com pedintes em suas dependências e proximidades, desde pedir a apreensão de menores em situação de rua até contratar assistentes sociais para orientá-los a fazerem cursos.
O abismo social brasileiro se escancarou ainda mais durante a pandemia e a crise econômica decorrente, com desemprego recorde. Meninos carregam placas de "Tenho Fome", e famílias inteiras ficam na porta dos comércios.
Meg Silva, 46, se dá conta disso. Ela mora na calçada diante de um supermercado, no bairro paulistano de Pinheiros. "Fui demitida e estou esperando receber meus direitos trabalhistas. Quando pegar minha grana, me mando daqui." Quer voltar para Salvador, sua terra natal. Os pedestres escorregam umas notas e mantimentos para ela. Com isso, ela vai sobrevivendo. "Já morei no meio do barro e dos mosquitos. Até que essa calçada embaixo de uma marquise está melhor."
Enquanto isso, a desigualdade é encarada cada vez mais como parte da paisagem brasileira, numa realidade em que muitos aturam e poucos faturam.
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