'Sonhar não é proibido': dançarino Walter Soul quer ser presidente
Após descer do ônibus na Praça da Estação, no centro de Belo Horizonte, em uma tarde de sexta-feira especialmente quente para quem, como ele, vai vestido de terno e gravata, Walter Pinheiro, 58, abotoa o blazer, ajeita o cabelo black e o grosso crucifixo prateado que leva ao pescoço e liga sua caixa de som portátil, erguendo-a ao ombro.
Do potente alto-falante ressoa o grito de James Brown, seguido pelos metais e a percussão dos The J.B.'s, a mítica banda que nos anos 1970 acompanhava o ídolo do soul. E assim, caminhando com firmeza e balanço, Pinheiro se lança ao asfalto para mais um dia de campanha.
Não demora para que o reconheçam. "Te vi dançando no TikTok, sou teu fã!", diz um homem que vende artesanato na calçada. Já no sinal, prestes a atravessar a Avenida dos Andradas, um motorista buzina e grita animado: "viva o Black Soul!".
Pinheiro sorri e acena, e explica à reportagem: "Muita gente me conhece, mas eu não tenho condição de conhecer todo mundo, né?". E de fato, Walter "Soul", como é chamado em BH, é uma figura popular na cidade.
Nasce uma estrela
O que lhe valeu o renome foi a sua ideia de criar, em 2007, o Movimento Soul BH, um entre os vários coletivos que, como o Quarteirão do Soul, o Baile da Saudade e o Black Soul BH, organiza festas e cultiva o gosto pela música negra dos anos 1970.
Seja no Aglomerado da Serra, na periferia de BH — onde vive desde a infância — ou na Praça Sete, no coração da cidade, Pinheiro já ajudou a reunir milhares de dançarinas e dançarinos embalados pelas músicas de Tony Tornado, Aretha Franklin e, é claro, James Brown.
Porém essa fama não o contenta. É que em 2022 Walter Soul pretende ter o seu nome falado em todo o país: ele quer ser candidato à Presidência da República, desbancando, se possível, concorrentes como o ex-presidente Lula (PT), o atual, Jair Bolsonaro (sem partido), Ciro Gomes (PDT) e João Doria (PSDB).
"Depois da palhaçada da vitória do Bolsonaro, pensei: se um cara que nunca fez nada de bom pra ninguém conseguiu ser eleito, por que eu, que sou trabalhador e não tenho o rabo preso, não posso?", questiona Pinheiro.
Carreira militar
Embora não possa ouvir falar no atual presidente sem se indignar, Pinheiro e Bolsonaro se assemelham em alguns pontos: assim como o capitão reformado do Exército, Pinheiro serviu às Forças Armadas, na condição de cabo — da qual pediu baixa em 1983 por discordar da ideologia de seus superiores, segundo diz.
E não só por uma questão ideológica, mas também estética. Aficionado pelo soul desde a adolescência, Pinheiro se via impossibilitado de ostentar seu penteado black power e de frequentar os numerosos bailes da capital, que não contavam com a simpatia dos militares.
Mais de uma vez, em seus tempos de soldado, saiu às pressas das pistas de dança ao ver surgir a polícia do Exército. Isso, ao lado da ideologia direitista, o convenceu de que a caserna não era para ele.
Depois dos anos como militar, Pinheiro enfileirou funções: trabalhou com fotografia, foi jogador amador de futebol, apitou por mais de dez anos jogos das categorias de base como árbitro da Federação Mineira de Futebol, atuou como educador na extinta Febem — atual Fundação Casa, que recebe menores infratores — e, em 1995, tornou-se carteiro, função que exerce até hoje.
Peregrinação política
Também como o atual presidente, Pinheiro peregrinou por várias agremiações políticas. Nos Correios, passou a frequentar as reuniões do sindicato, e em 2002 aceitou o convite de um colega para filiar-se ao Partido da Causa Operária (PCO). Mas a desorganização do partido lhe pareceu demasiada, e ele decidiu mudar de ares. Assim, no ano de 2008, saltou para o Democratas (DEM). Já em 2013, quando dissidentes do DEM mineiro migraram para o então Partido Ecológico Nacional (PEN) - hoje Patriota, e que está no caso de alojar Jair Bolsonaro - Pinheiro os acompanhou.
"Mas como sempre fui de esquerda, era difícil concordar com as propostas desses partidos de direita", justifica Pinheiro, que em 2019 aportou, enfim, na moderada Rede, pela qual se lançou candidato a vereador nas eleições de 2020, já pensando no Planalto em 2022.
Contudo, as milhares de pessoas que antes da pandemia dançavam ao som da discotecagem de Pinheiro (quando assume as pickups, prefere ser chamado de Sir Walter Soul, pois acha mais elegante), não lhe confiaram seus votos: sua candidatura contou com pouco mais de 600 adesões, insuficientes para elegê-lo.
Ele credita o fracasso a dois fatores: o apoio do partido, segundo ele, inexistiu — "paguei a campanha do meu bolso" —, e muitos conhecidos não cumpriram com a promessa de apoiá-lo. "Alguns me acham despreparado para assumir um cargo político. Mas a derrota não me abalou. Me considero mais preparado do que todos os que estão no poder".
Essa certeza o leva a sustentar a intenção de candidatar-se à presidência, apesar de que mesmo entre os soulmen belo-horizontinos sua ideia seja recebida com indiferença. Também seus familiares — ele é casado e pai de duas filhas e um filho, todos adultos —, se não criticam suas pretensões, tampouco se engajam na campanha. "Muita gente pensa que sou doido por querer ser presidente. Um negro, pobre e favelado não pode liderar o país? Além disso, sonhar não é proibido", argumenta.
Tempo bom
Depois de subir a Avenida Amazonas com seu som à toda altura, Pinheiro chega ao ponto nevrálgico de sua campanha presidencial: a Praça Sete.
Não apenas por contar com a calçada de cimento polido, que favorece passos como o moonwalk, Pinheiro escolheu aquele lugar para o dirigir-se ao eleitorado. É que a Praça Sete, no imaginário do soul belo-horizontino, ocupa uma posição tão central quanto a de James Brown: era ali que, nos anos 1970 e 1980, amantes da música black, vindos de todos os bairros, se reuniam para ir aos concorridos bailes do centro, dentre os quais se destacavam o Máscara Negra e a União Síria.
Pinheiro, menor de idade durante o auge desses eventos, conta que chegou a frequentá-los, munido de uma carteira de estudante com a data de nascimento adulterada.
A repressão policial aos bailes e a ascensão do disco desbancaram o soul em BH, e o movimento, nos anos 1990, minguou. Só que ao contrário dos versos de Thaíde, o tempo bom voltou. Em 2004, DJ Geraldinho e Ronaldo Black, cartas marcadas nos bailes das antigas, combinaram um encontro num sábado à tarde na Rua dos Goitacazes, a poucos passos da Praça Sete, com os amigos que curtiam soul.
A princípio comparecia a velha guarda, na faixa dos 40 e 50 anos, mas o som de Brown é contagiante, e o encontro de amigos se converteu rapidamente numa festa de rua famosa em BH, o Quarteirão do Soul. Atualmente, em função da pandemia, os encontros estão suspensos.
Equipe de um homem só
Antes de iniciar seu discurso na Praça Sete, Pinheiro dá uma olhada no celular. Sua campanha centra ações na internet - todo o percurso é gravado e publicado nas redes, onde o aspirante ao Planalto conta, entre diversos perfis, com mais de 100 mil seguidores.
Nem todos os seguidores de Pinheiro são favoráveis à empreitada política. Enquanto alguns o encorajam, outros o criticam: "Sê loco kkkk Melhor ficar dançando e não se meter onde não tem bagagem", comenta um internauta.
O "gabinete do soul" tem apenas um colaborador: o próprio Pinheiro. Preparado o celular para a filmagem, Pinheiro seleciona a música "Mandamentos Black". "Assuma a sua mente, brother!", canta o carioca Gerson King Combo, sobrepondo-se ao ruído dos carros e das motos.
O candidato começa a dançar e os passantes apressados param por um momento para vê-lo. Pouco depois, dois catadores de latinhas interrompem suas funções, juntando-se à dança, e um semicírculo forma-se ao redor do político. Está comprovado o poder de mobilização social do soul.
Pinheiro jura ir até o fim com a sua candidatura, e, já prevendo a recusa da Rede em lançá-lo, pensa em entrar na Justiça Eleitoral para poder disputar as eleições sem partido. Mas ele, que se formou em Direito poucos meses antes da pandemia, não se ilude: "tenho consciência de que meu pedido será indeferido", admite. "Pelo menos estou incomodando algumas pessoas de mente fechada, e o que eu quero é justamente isso", diz. Caso a candidatura não vingue, considera o ex-presidente Lula "o menos ruim" entre os postulantes ao cargo.
Já no caso de Davi vencer Golias e Pinheiro se eleger, ele faz uma promessa para seus primeiros dias no posto máximo de Brasília. "Vou lutar para revogar a reforma da previdência do Bolsonaro e a reforma trabalhista do Temer, que arrebentaram com a vida do trabalhador. Pode me cobrar!"
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.