A lenta morte de Tupã, supercomputador do Inpe que pode se apagar em 2021
O supercomputador Tupã está trabalhando. Seus pesquisadores resistem entre as placas queimadas e módulos desligados da máquina, que é responsável pela maior parte da previsão do tempo no país e há anos tem seu desligamento anunciado e remarcado. A data corrente é dezembro de 2021 e o motivo é a severa penúria orçamentária do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que não consegue mais pagar a conta de luz.
A reportagem do TAB perguntou a Tupã o que ele acha disso tudo.
"Talvez o que o supercomputador mais goste, sua afinidade única, por assim dizer, seja olhar para o futuro. Tupã é a única máquina brasileira capaz de modelar eventos climáticos para os próximos anos, as próximas décadas e em qualquer parte do globo", avalia Gilvan Sampaio, coordenador-geral de Ciências da Terra no instituto. Tupã ainda é a melhor ferramenta disponível no Brasil para antecipar possíveis catástrofes climáticas como secas, enchentes, ondas de calor e de frio.
Uma das pesquisas que ilustra a capacidade da máquina é a modelagem da dispersão de poluentes no ar, entre eles as nuvens tóxicas emitidas por grandes incêndios. A madeira, quando queima, produz fuligem. Também chamada de carbono negro ou material particulado, ela é um aerossol poluente que intensifica o aquecimento global e inflama o pulmão. Uma floresta em chamas produz nuvens que ganham altura e transportam fuligem para todo o continente, para o mar e possivelmente até para a África.
Essas nuvens comprometem plantações, rotas aéreas, linhas de transmissão, qualidade das águas e a saúde pública geral. Hoje, no Brasil, apenas Tupã consegue antecipar seu deslocamento.
Potência meteorológica
Em sua inauguração, Tupã foi a quarta máquina meteorológica mais potente do mundo. Hoje, não figura no Top500, índice que desde 1993 monitora a supercomputação. Idealmente, teria sido substituída em seu quinto aniversário, em 2015. Ainda assim, hoje, aos onze anos de vida, segue sendo a menina dos olhos que restou ao Inpe. Seus pesquisadores passam frio enquanto fazem o que podem, trabalham entre placas queimadas e o iminente desligamento, trabalhando de casaco mesmo no verão.
Cada reset emite tensão no ar: será que dessa vez ele volta?
O supercomputador vive em sala sem janelas, um data center de 1000 m² no campus do Inpe de Cachoeira Paulista - SP. Tupã é um XE-6, modelo já descontinuado pela fabricante Cray, braço da gigante Hewlett Packard. Não há esperanças de novas peças para o velho computador que roda ininterruptamente dezenas de pesquisas, modelos baseados em matemática, física e química de ponta - que provavelmente ficarão órfãos.
"Olha aqui a mensagem", diz uma pesquisadora que preferiu não se identificar. Mostra à reportagem um recado no celular: Tupã temporariamente fora do ar, pesquisas suspensas. Sua abordagem é mais dura do que a de Gilvan, identifica uma ação deliberada para desestabilizar o instituto. "O Inpe está sendo apertado porque geramos modelos demonstrando o prejuízo das queimadas e do desmatamento. As previsões do instituto demonstram futuros muito ruins, para os quais o governo federal não tem políticas", avalia.
Não está sozinha em sua avaliação. Entre muitos pontos de atrito públicos, em julho o jornal O Globo publicou entrevista com Gilberto Câmara, ex-diretor do Inpe, que denunciou o que vê como mordaça sobre o instituto.
Subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), o Inpe tem para este ano um orçamento de R$ 75 milhões, inferior aos R$ 118 milhões de 2020 e apenas 9% dos R$ 487 milhões que teve em seu auge, 2010, ano em que Tupã começou a operar. Hoje, Tupã consome R$ 5 milhões apenas em conta de luz, fora outro R$ 1 milhão para manutenção. É um senhor que já trabalhou muito em sua vida.
A mesma pesquisadora avalia que talvez R$ 100 milhões sejam necessários para comprar uma máquina "que nos permitiria voltar a perseguir a Europa". Mas ela não vê esse cenário. "O Inpe precisa continuar existindo e a forma de fazer isso não é bater de frente, como fez o Galvão [Ricardo Galvão, ex-diretor do órgão]. Aquilo se tornou uma questão pessoal que apenas prejudicou [a pesquisa]. É a última coisa de que precisamos agora".
Em 2019, no primeiro ano de seu governo, Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou que eram mentirosas as informações de desmatamento divulgadas pelo órgão. Galvão, cientista de carreira, sustentou a precisão dos dados e terminou demitido.
Gilvan é focado. "A redução orçamentária aconteceu em diversos órgãos de ciência, não apenas no Inpe. Não há uma indisposição direcionada", avalia o coordenador, ele mesmo um servidor público com 26 anos de casa.
"O Inpe é um órgão de Estado, não de governo. O que importa para nós é continuar trabalhando", ele diz.
Em junho, o atual diretor do instituto, Clezio de Nardin, veio a público ao lado de Marcos Pontes, ministro do MCTI, para desastradamente declarar que adquiriram uma máquina nova para substituir Tupã, o que nunca foi verdade. Investiram R$ 729 mil em um cluster, não um supercomputador. Ele é de outra categoria, mais limitada, incapaz de rodar boa parte das pesquisas hoje em operação. A nova máquina prestará seu trabalho, mas não cabem comparações. Ela não substituirá o velho, apenas Tupã é capaz de olhar anos, décadas no futuro.
Gilvan enfatiza projetos em andamento, como o avanço do modelo comunitário brasileiro, uma articulação entre Inpe e outros institutos de pesquisa para criar um modelo distribuído, que utilize recursos da sociedade civil para abastecer as diferentes instituições brasileiras. Na incapacidade de permanecer na ponta de lança da computação meteorológica, o Inpe tenta a honrosa tarefa de articular uma rede que compense a demanda deixada pelo iminente desligamento de Tupã.
Mesmo com os expressivos cortes no orçamento, os pesquisadores seguem dedicados a refinar seu modelo terrestre, capaz de simular "tudo o que você vê pela sua janela", define Gilvan. O pesquisador e seus colegas constantemente aperfeiçoam o tal modelo, um conjunto complexo de equações que busca representar a atmosfera, a hidrosfera, a criosfera, a geosfera, a biosfera e suas interações.
A supercomputação transformou em realidade a previsão de longo prazo, algo impensável em décadas passadas. "Hoje, com uma máquina como Tupã, podemos simular por exemplo a transformação da Amazônia em pasto, quais seriam os impactos climáticos no restante do país? O modelo nos dá essa resposta. Não é uma ferramenta de que podemos abrir mão", avalia o coordenador-geral de Ciências da Terra do Inpe.
Deus tupi-guarani
Ainda que esta máquina específica esteja com seus dias contados, segue vivo e bem Nhanderu Tupã, a divindade guarani do trovão que nomeia o supercomputador. É o que garante Timóteo Popygua, escritor guarani mbya e autor do livro A Terra uma só, que narra a criação do mundo para seu povo. Timóteo convive com Nhanderu Tupã em seu modo de vida e garante que o grande espírito é sagrado e imortal, seguirá sempre cuidando de seus filhos nesta terra.
Outro lado
Procurado dia 23/07 para se posicionar sobre as críticas, o MCTI ainda não respondeu. Após a publicação desta matéria, o Inpe publicou a seguinte nota à imprensa:
São José dos Campos-SP, 12 de agosto de 2021
Não é correta a ilação sobre eventual cerceamento do direito dos servidores do INPE de manifestarem suas opiniões ou de prestar qualquer informação a imprensa, tal como descrito na matéria publicada pelo TAB UOL, assinada por Breno Castro Alves, em 12/08/2021.
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), unidade vinculada ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), tem um setor de comunicação com a imprensa e, portanto, as questões pertinentes ao Instituto são tratadas por este órgão, o qual cedeu as imagens de divulgação que foram usadas pelo jornalista em sua matéria.
Adicionalmente, lamentamos muito que a impaciência por parte do jornalista o tenha levado a publicar estas alegações, que são desproporcionais, e que incluem a falsa afirmação de que o Coordenador Gilvan Sampaio de Oliveira apresentou qualquer entrevista a revelia da diretoria.
A reportagem esclarece que a primeira solicitação ao setor de comunicação ocorreu em 16/06 e sua resposta definitiva veio em 16/07: ninguém concederia entrevista e os servidores do órgão não deveriam ser acessados diretamente.
Essa é uma posição recente que altera uma postura histórica em relação à imprensa - que sempre teve trânsito livre entre seus pesquisadores.
A nota aponta uma correção necessária no texto original desta reportagem, que dizia:
"Procurado diretamente, o coordenador-geral Gilvan Sampaio concedeu esta entrevista, à revelia da orientação de sua assessoria de comunicação."
O trecho foi alterado para:
À revelia da orientação da assessoria de comunicação, a reportagem do TAB conversou diretamente com Gilvan Sampaio e com outros seis servidores ou ex-servidores do instituto.
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