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De Perus a Paris, Toquinha quer levar seu breaking às Olimpíadas de 2024

Naiara Xavier dos Santos, 19, é a b-girl conhecida como Toquinha - Pedro Santi/UOL
Naiara Xavier dos Santos, 19, é a b-girl conhecida como Toquinha Imagem: Pedro Santi/UOL

Pedro Santi

Colaboração para o TAB, em São Paulo

29/09/2021 04h00

É noite de segunda-feira no CCSP (Centro Cultural São Paulo). Turma reunida, breakbeat na caixa e performance rolando -- é dia de treino. De sete pessoas ali, há seis homens e apenas uma mulher. B-Girl Toquinha, 19, está trajada na melhor forma, com pisante e calça Nike, camiseta com a frase "com zé povinho é pouca ideia". Ela chegou às 17h00 e foi embora por volta das 19h30. Nessas duas horas e meia de treino, os dançarinos alternavam o espaço central do salão entre uma música e outra -- um de cada vez, no ritmo da batida. Conhecida na cena do breaking desde os 14 anos, Toquinha chama atenção na pista.

Na certidão de nascimento, o nome dela é Naiara Xavier dos Santos. Nascida e criada em Perus, bairro da zona norte de São Paulo, ela atravessara 40 km para sair da periferia e chegar ao bairro nobre que recebia sua performance naquela segunda.

Toquinha é hoje um dos maiores nomes brasileiros da dança ligada ao movimento hip-hop, que terá sua estreia como esporte olímpico nos Jogos de Paris em 2024. Ela coleciona títulos -- entre eles, o da maior competição individual entre b-girls e b-boys (como são chamados os praticantes de breaking) do mundo, o Red Bull BC One Cypher. Além de batalhar, também já foi jurada nos eventos Break Art, The Tree House Jam, Batalha da Casa e Batalha SP.

A b-girl paulistana Toquinha treina no CCSP - Pedro Santi/UOL - Pedro Santi/UOL
A b-girl paulistana Toquinha treina no CCSP
Imagem: Pedro Santi/UOL

De Perus a Paris

O sonho de Paris começa em Perus. Toquinha mora na comunidade Recanto dos Humildes com os pais e a namorada, em uma casa com quatro cômodos. O pai, pedreiro, e a mãe, faxineira, apoiam totalmente sua caminhada na dança.

Toquinha não esconde sua admiração pela quebrada. "Aqui é sem igual, muito receptivo. O povo é humilde pra caramba."

O bairro tem histórico de luta social. Foi palco de um dos maiores conflitos sindicais da história -- Queixadas, greve operária de 1962 que durou sete anos, como resposta à carência de direitos aos trabalhadores da construção civil. Hoje, abriga espaços com movimentos sociais e culturais como a Comunidade Cultural Quilombaque, Ocupação Artística Canhoba e Casa Hip-Hop Perus.

A b-girl Toquinha, 19, batalha para representar o breaking brasileiro nas Olimpíadas de Paris-2024 - Pedro Santi/UOL - Pedro Santi/UOL
A b-girl Toquinha, 19, batalha para representar o breaking brasileiro nas Olimpíadas de Paris-2024
Imagem: Pedro Santi/UOL

Era na Casa Hip-Hop que Toquinha treinava antes de os tapumes tomarem conta. Desde o início de 2020, o local está interditado pela prefeitura para reforma. Ali treinavam quatro grupos diferentes de b-boys e b-girls. Agora, segundo Toquinha, quem quiser treinar em Perus, tem que ser na rua -- e dependendo da qualidade do asfalto, o risco de lesão é iminente.

A frequência de treinos que costumava ser de 5 a 6 vezes na semana, hoje, chega com dificuldade a duas. A viagem de ida e volta de trem e metrô até o CCSP sai por R$8,80, valor pesado no orçamento de quem sobrevive de maneira autônoma em tempos pandêmicos.

A pandemia interferiu diretamente nas oportunidades de trabalho e renda da b-girl. Para se virar e tirar um trocado, a solução foi se apresentar no trem, no semáforo e nas ruas. As veredas do extremo norte da cidade e as linhas 7 e 11 da CPTM têm sido o canal. Toquinha costuma dizer que a dança é sua única opção. É disso que quer viver. "Por mais que eu não tenha a melhor estrutura, eu sou do corre, mano. Eu não paro, tá ligado? Tem que persistir nos bagulhos, correr atrás, né… Fé!", reflete.

No breaking, os praticantes se destacam pela criatividade. Para vencer competições internacionais da modalidade, entretanto, são necessários movimentos e habilidades específicas. Quando falamos sobre esses padrões impostos nos campeonatos e nas batalhas, Toquinha não pareceu interessada em mudar seu estilo para agradar a ninguém. "Breaking é uma dança, não é só ficar de ponta-cabeça", diz. A b-girl quer ganhar do próprio jeito, e, de preferência, com autenticidade. "Cada um tem o seu estilo. Se eu dançar com o feeling do meu parceiro não vai ter o meu tempero, a minha essência."

A b-girl paulistana Toquinha - Pedro Santi/UOL - Pedro Santi/UOL
A b-girl paulistana Toquinha
Imagem: Pedro Santi/UOL

Amor pela dança

O primeiro contato com o breaking veio em 2015, a partir de uma ação socioeducativa na escola durante o oitavo ano do ensino fundamental. Toquinha participava de tudo que era oferecido -- capoeira, futsal, grafite. Vem do antigo mestre de capoeira o apelido. "Eu tava sempre de blusa de frio e touca e ainda não tinha apelido. Aí ficou e foi pro breaking."

O encantamento pela dança veio rápido. Na época, o professor realizava batalhas entre os estudantes e, com apenas três meses de prática, levou a turma para competir no município de Mauá, na Grande São Paulo. Toquinha foi com sua crew e venceu o campeonato. "Aí eu esqueci tudo e falei 'já era, é isso que eu quero'."

No ano seguinte, o programa chegou ao fim e a b-girl passou a estudar à noite. O período noturno coincidiu com seus treinos, e Toquinha optou pela dança. Atualmente pretende concluir o ensino médio em um CEEJA (Centros Estaduais de Educação para Jovens e Adultos) do bairro.

Foi neste contexto que os "Filhos da Rua", coletivo de hip-hop criado em 2016, tiveram extrema importância na caminhada da dançarina. O grupo já era responsável pelas aulas na escola e continuou oferecendo oficinas de forma independente. Toquinha seguiu aprendendo junto ao coletivo, até que, em 2018, entrou oficialmente para o time e passou a chegar junto nas competições.

"A gente não imaginava formar uma b-girl que fosse uma das melhores do Brasil" diz Lucas Melo, conhecido como b-boy Lu Krusty, dançarino e um dos idealizadores do "Filhos da Rua". "Sem dúvida nenhuma, ela é um dos principais nomes para representar o Brasil nas Olimpíadas", ressalta.

Hoje, além das iniciativas artísticas e culturais, o coletivo também faz ações sociais no território, como entrega de cestas básicas e doação de roupas. "A gente ajuda a quebrada, articula, faz evento, tira a molecada da rua."

A b-girl Toquinha, 19 - Pedro Santi/UOL - Pedro Santi/UOL
A b-girl Toquinha, 19
Imagem: Pedro Santi/UOL

"Asneira para as minas"

"Todo dia é dia dos b-boys, dos DJs e dos grafiteiros falarem alguma asneira pras minas", conta Toquinha, falando do machismo que as mulheres sofrem no movimento hip-hop.

Toquinha descreve como é comum ter seu trabalho diminuído pelos homens. Chegou a ouvir de um b-boy, depois do treino, que todas as b-girls são vagabundas, preguiçosas. Ela conta essa história com indignação e cita uma ainda mais grave, quando um b-boy chegou a passar a mão nela em uma van, voltando de um evento em Bragança Paulista, interior de São Paulo.

"Ia falar que tô acostumada, mas é horrível ter que me acostumar com isso…". E rebate com a frase que estampa a camiseta: "não dou trela pra zé povinho. Se vier levar uma, não vai arrumar nada".

Toquinha, ou "Tocria", como é conhecida pelas bandas do Rio de Janeiro -- onde tem vínculos fortes por conta dos campeonatos -- vai em busca de um espaço para competir nos Jogos Olímpicos de Paris, evento que, na sua opinião, traz uma evolução para a cena hip-hop.

Segundo ela, muitos dos old schools (gerações mais antigas) são contra o fato de o breaking ter virado esporte olímpico, por levar o estilo para outro rumo. Ela discorda. "Vai rolar nas Olimpíadas, vou querer ir, e quando eu for oldschool, vou torcer para o bagulho ficar bem mais avançado ainda."

O circuito olímpico vai contar com as 16 melhores b-girls e os 16 melhores b-boys do mundo para competirem na categoria 1x1 (mata-mata). As regras ainda estão sendo lapidadas pela WDSF (World Dance Sport Federation) para a competição.

Por enquanto, o foco é se dedicar aos eventos nacionais e conseguir vaga nas competições internacionais. Sua agenda já está programada -- em setembro, foi à Brasília e venceu o Brasil Super Battle; em outubro, viaja a Minas Gerais para o Battle Skill e volta a São Paulo para buscar o bicampeonato no Red Bull BC One Cypher.

"Agora já era. Soltou o freio de mão, esquece", diz ao TAB. Paris é a meta, mas não o destino final. "Só saio de Perus para fazer o nome fora. Depois, com certeza volto para a quebrada."

Para a b-girl, arte e cultura têm papel crucial nas quebradas. Avaliando a própria trajetória, diz que não sabe o que estaria fazendo se não fosse a dança: conhece inúmeras histórias de pessoas que "se perderam" em outros caminhos e acabaram se recuperando com a prática da modalidade. "O breaking é isso nas quebradas, um refúgio contra pensamentos ruins. Tira várias pessoas do crime e das drogas."