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Ex-médico da Hapvida no CE relata pressão para receitar 'kit covid'

O médico Felipe Peixoto foi demitido do Hapvida, em Fortaleza, depois de se negar a receitar o "kit covid" - Marília Camelo/UOL
O médico Felipe Peixoto foi demitido do Hapvida, em Fortaleza, depois de se negar a receitar o 'kit covid'
Imagem: Marília Camelo/UOL

Mateus Araújo

Do TAB, em São Paulo

03/10/2021 04h01

No dia 27 de setembro, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) realizou diligências na sede do plano de saúde Hapvida, em Fortaleza. Em nota à imprensa, a agência disse apurar "denúncias sobre cerceamento ao exercício da atividade médica aos prestadores vinculados à rede" e "sobre a assinatura de termo de consentimento pelos beneficiários atendidos na rede própria, para a prescrição do chamado 'kit covid'".

A principal denúncia contra a operadora foi feita em Fortaleza pelo médico Felipe Peixoto Nobre, 27. Num relatório de nove páginas entregue ao MPCE (Ministério Público do Ceará), ao qual TAB teve acesso, o profissional relata pressão por parte de um coordenador para receitar hidroxicloroquina de maneira "compulsória" a pacientes. O documento foi anexado a um processo administrativo que resultou em multa à operadora no valor de R$ 468 mil, aplicada pelo Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor. Em 1º de setembro, o relatório da investigação foi enviado à CPI da Covid, no Senado.

O Hapvida nega irregularidades e recorreu da decisão. A defesa do grupo diz que não há prova suficiente para as acusações, que preserva a autonomia médica e que o acesso aos prontuários é exclusivo aos hospitais. O recurso será julgado neste mês.

De acordo com Nobre, em abril de 2020 o Hapvida incluiu no protocolo institucional a orientação para que os médicos receitassem hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 — em muitos casos, sem ter feito exame que comprovasse a infecção. Com o tempo, o direcionamento passou a ser uma exigência, à medida que a operadora disponibilizava hidroxicloroquina gratuitamente na farmácia do hospital.

Chefes divulgavam pesquisas e dados insuficientes para comprovar a eficácia da droga. "Diziam que havia uma redução do número de internação de pessoas graves nas UTIs e uma melhora no tempo de permanência dos pacientes no hospital. Mas nenhum desses dados foi provado", explica Nobre, em entrevista ao TAB por telefone.

O receituário informatizado da rede também foi programado para cumprir a ordem interna, afirma o médico. "Você vai colocando as queixas do paciente, e, com o diagnóstico, o sistema vai sugerindo possíveis medicamentos", lembra.

No relatório que entregou à promotoria, Nobre contou que os profissionais resistentes à prescrição sofriam "assédio virtual e presencial". Seus nomes entraram para uma lista de "opositores", e, por mensagem de WhatsApp, eram cobrados a receitar "pelo menos duas vezes" o medicamento ou "seriam desligados do plano e retirados das escalas". "Recebi visita [do coordenador] durante os plantões, por pelo menos três vezes, e manifestei que não tinha intenção de prescrever o medicamento", relatou. A rescisão do contrato de prestação de serviço dele foi em 19 de maio. Aos promotores, a empresa disse que o afastamento não foi "conduta infrativa", já que o médico deixa claro na própria denúncia a vontade.

Dez dias depois, o MPCE deu início à investigação. Além dos relatos do médico, o processo incluiu a reclamação de uma usuária do plano de saúde que recebeu prescrição de hidroxicloroquina sem confirmação do quadro de covid-19. "Trata-se de uma conduta completamente arbitrária e abusiva [do Hapvida]", afirma o promotor Hugo Vasconcelos Xerez. "Quem contrata plano de saúde é o consumidor, e há uma relação que precisa ser respeitada: médico e paciente, na qual ninguém deve intervir. Nesse caso, os médicos não tinham autonomia."

Felipe Peixoto Nobre levou o caso ao Cremec (Conselho Regional de Medicina do Ceará), mas até agora não obteve retorno sobre o andamento da denúncia. Em ofício enviado ao MPCE no dia 9 de julho de 2020, o presidente da instituição, Helvécio Neves Feitosa, confirmou a abertura de uma sindicância e disse que convocou o diretor técnico do Hapvida para uma reunião, "a fim de discutir o assunto". O Cremec não respondeu à reportagem.

O clínico Felipe Peixoto Nobre, 27 - Marília Camelo/UOL - Marília Camelo/UOL
Felipe Peixoto, médico cearense que denunciou o plano de saúde Hapivida, em Fortaeza, por obrigar aplicação de kit-covid na rede médica do Ceará.
Imagem: Marília Camelo/UOL

Receita já salva

Relatos de usuários do Hapvida que se assemelham ao que foi dito pelo médico cearense se tornaram cada vez mais frequentes e devem entrar numa nova investigação da ANS sobre a administração do "tratamento precoce" no Brasil.

Até poucos meses atrás, o professor Rosano Freire, 32, desconhecia a existência do plano de saúde Prevent Senior. Ele também mora no Recife, onde a empresa paulista não tem atuação. Mas desde as informações de que um suposto "kit covid" era oferecido pela rede, fez associação imediata com o que viveu no início do ano, quando teve a doença.

Freire teve um quadro leve da doença, com febre alta e incessante, e procurou o Pronto Atendimento Derby após três dias. Em 16 de janeiro, foi atendido por médica plantonista que receitou dipirona, mas não solicitou exame que confirmasse a infecção. No dia seguinte, Freire foi a uma farmácia e fez o teste, que deu positivo.

Com a persistência da febre, o professor retornou ao pronto-socorro do Hapvida, dessa vez com o resultado do exame em mãos, e foi atendido por outro clínico. "Na mesma hora, ele imprimiu uma receita e me entregou. Nem me examinou, nada. Acho que a receita já estava salva ali", lembra. Na prescrição constam, além de zinco e vitamina D, o trio ivermectina, prednisolona e hidroxicloroquina. "O médico me mandou à farmácia do hospital para pegar o remédio. Cheguei lá, colocaram num saco, assinaram rapidamente a receita e me entregaram." O paciente não foi orientado sobre a falta comprovação de eficácia da hidroxicloroquina.

Freire não quis tomar os remédios, e no mesmo dia procurou uma UPA, onde foi orientado a tratar somente os eventuais sintomas. Em casa, cumpriu o isolamento de 15 dias.

'Medo entre as equipes'

O Hapvida tem rede própria de hospitais em 13 estados brasileiros: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande Do Norte, Santa Catarina e Sergipe. A reportagem entrou em contato com os Ministérios Públicos desses estados, e em nenhum deles há investigações semelhantes à do Ceará. Somente em Pernambuco foi recebida uma denúncia sobre o tema, mas ela foi arquivada por falta de provas, segundo a assessoria de comunicação do órgão.

"Existe medo entre as equipes", afirma uma médica recifense que trabalha para o plano de saúde desde fevereiro de 2021. Recém-formada, ela dá três plantões semanais no Pronto Atendimento Derby, atendendo casos de covid-19. "A maioria do pessoal que trabalha no Hapvida se formou há pouco tempo. É o primeiro trabalho, então é natural que as pessoas não queiram se indispor. O circuito é muito pequeno."

A médica confirma que situações semelhantes àquelas contadas pelo colega cearense acontecem no hospital em Pernambuco. "Todo prontuário é acompanhado pela chefia do plantão", conta. "O kit são duas doses de 400mg de hidroxicloroquina no primeiro dia de tratamento e uma dose por dia, até o quinto dia. Para o paciente com mais de cinco dias de sintomas, acrescenta-se o corticoide."

Quando começou a trabalhar para a operadora, explica, a regra de receitar hidroxicloroquina já era conhecida. "Não tem muito como questionar. Mas há médicos que receitam e deixam a critério do paciente", pondera. É o caso dela, diz. "A exigência para receitar [hidroxicloroquina] não é tão incisiva como antes. A principal reclamação mesmo, é a falta de teste. Só fazemos em paciente mais graves."

Questionada se há casos de uso do medicamento em pacientes internados e sem consentimento da família, a médica disse que não tem como provar.

As denúncias contra a Prevent Senior e as recentes diligências no próprio Hapvida criaram um clima de tensão nas equipes, segundo outra plantonista da rede em Pernambuco. Ela é enfermeira e trabalha há três anos no grupo. "No Recife, todo mundo sabe que o Hapvida receita hidroxicloroquina. No hospital sempre se fala desses escândalos."

Em São Paulo, operador Prevent Senior, é investigada por uso de 'ki covid' - Renato Cerqueira/Estadão Conteúdo - Renato Cerqueira/Estadão Conteúdo
Em São Paulo, operador Prevent Senior, é investigada por uso de 'ki covid'
Imagem: Renato Cerqueira/Estadão Conteúdo

Outro lado

TAB procurou a rede Hapvida para comentar os casos. A empresa foi perguntada sobre assédio relatado pelo médico para receitar o kit, sobre o protocolo de atendimento dos pacientes — que não fazia teste de covid nem exame físico e não informava a ineficácia da hidroxicloroquina — e se a rede tem algum acordo ou parceria com o governo federal para teste e aplicação do "tratamento precoce".

Em nota, o Hapvida disse que "não mediu esforços para garantir a melhor assistência a seus beneficiários" e citou a abertura de "mais de mil leitos de UTI", contratação de "mais de 6 mil profissionais de saúde", "compra de mais de 532 respiradores, além do aluguel de prédios para a ampliação dos espaços de internação e a aquisição de equipamentos de proteção em grande quantidade para reforçar a segurança dos profissionais".

Especificamente sobre hidroxicloroquina, a empresa explicou que "no passado, havia um entendimento" de que o medicamento "poderia trazer benefícios aos pacientes". No entanto, acrescenta que "nas ocasiões em que o médico acreditava que a hidroxicloroquina poderia ter eficácia, sua definição ocorria sempre durante consulta, de comum acordo entre médico e paciente, que assinava termo de consentimento específico em cada caso".

Segundo o Hapvida, a adoção do remédio foi reduzida de "forma constante e acentuada", e não se sugere mais o uso dele, "por não haver comprovação científica de sua efetividade". "Mas segue respeitando a autonomia e a soberania médica."