'Esse cara é maluco': obra sobre vítimas da covid intriga público em SP
É uma sexta-feira de sol quente na avenida Paulista, em São Paulo, e centenas de manequins pairam no ar a alguns metros da linha do horizonte. Têm tamanhos e cores diversas, vestem roupas coloridas e capuzes nos rostos. Ancorados em cabos de aço, pelo ombro, parecem um grupo de pessoas a flutuar sobre as cabeças de quem passeia por ali na altura do número 37.
Desde que foi inaugurada no dia 15 de janeiro, no pátio do espaço cultural Casa das Rosas, a obra dedicada às vítimas da pandemia e profissionais da saúde atrai olhares. Quem passa em frente não consegue ficar imune à imagem. Tem quem passe apressado e apenas vire a cabeça e quem fique instigado a parar em frente e sacar o celular. As reações são as mais diversas — nas redes sociais, as fotos da instalação geraram críticas. "Perdi uma tia e não gostaria de vê-la representada por um manequim pendurado com um saco na cabeça", reclamou um homem no Twitter.
Autor da obra, Siron Franco não tem rede social, mas ouviu uma crítica pessoalmente, no dia da abertura. Uma mulher, alheia à identidade do artista, disse ao seu lado: "Que coisa deprimente. Isso é um desrespeito aos mortos". Protegido pelo rosto anônimo, Franco concordou: "Esse cara é maluco". Dias depois da instalação ser notícia até fora do Brasil, o artista observa, tranquilo: "A pessoa que olha e diz 'que horror' sentiu alguma coisa. Eu respeito isso".
Para ele, os 365 manequins não representam os mortos da pandemia. Após perder amigos (muitos médicos) e um irmão para a covid-19, Franco sentia necessidade de se desprender das dores da vida real, quando o país registrava 4 mil mortes por dia.
"Pode ser qualquer coisa. Podem ser pessoas renascendo. Eu queria fazer algo que eu não sabia o que era, mas que tirasse o olhar da horizontalidade", explica. "Essa função é boa pra saúde: virar o pescoço pra cima, coisa que o celular não nos deixa fazer mais."
É hora do almoço e Roni Cesar, 43, faz uma chamada de vídeo com o filho. Trabalha no prédio ao lado e não tinha visto ainda a instalação. "Não é legal?", diz virando a tela para cima para mostrar as roupas coloridas ao vento, e para baixo, onde as sombras dos manequins parecem criar uma espécie de projeção no chão. "Ele adora ver esses negócios", explicou à reportagem. Depois de ler a placa com um pequeno texto sobre a obra, sentenciou: "Tem uma mensagem". Qual seria? "Aqui no Brasil, essa doença é uma tragédia anunciada."
Gustavo Andrade, 22, diz ter sentido um tom sombrio. "A gente adora ver filme de terror, achei esse bagulho meio sinistro", opina. O amigo, Kauam Rodrigues, 22, achou o efeito impressionante, mas ponderou: "Para quem perdeu alguém na pandemia, pode sentir um pouco".
Com 75 anos e uma carreira de obras impactantes que refletem a história e os dilemas do Brasil, Franco diz ter consciência da necessidade de repercussão do seu trabalho. "No começo eu era muito criticado, as pessoas falavam: 'você faz isso pra aparecer'. Eu dizia: 'claro, eu quero que a imprensa noticie, não meu trabalho, mas esse assunto'", explica.
"Isso no Brasil é mais do que importante. A gente está vivendo um tempo com nossos mandatários que é inimaginável, bizarro."
"Para não virar babaca"
Siron Franco começou a carreira artística na adolescência, pintando retratos para a alta sociedade goiana. Com o dinheiro, comprava materiais para fazer outros experimentos e entrar na Escola de Artes e Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Aos 28, foi premiado o melhor pintor nacional na 12a. Bienal Nacional de São Paulo. Na sequência, viajou e ganhou prêmios ao redor do mundo. "Eu era muito garoto, você tem que ter uma estrutura emocional para não virar um babaca", observa.
Hoje, suas pinturas e esculturas estão presentes em espaços renomados, do MASP (Museu de Arte Moderna de São Paulo) ao MET (Metropolitan Museum of Art), em Nova York. Muitas delas são atravessadas por episódios trágicos, interesse que ele atribui ao trabalho voluntário dos pais na terra natal, em Goiás. "Eles achavam que as pessoas tinham que ir ao hospital uma vez por mês para ver quão dura é a vida. Eu comecei a me envolver com isso muito pequeno", relembra.
Das visitas, ficou gravada na cabeça a imagem de um caixão de recém-nascido — que voltaria à mente nos anos 1990, quando soube pelo colega e jornalista Gilberto Dimenstein que mais de mil crianças morriam diariamente no Brasil. Fez então uma bandeira do Brasil preenchida por 1020 caixões pequenos, exposta na frente do Congresso Nacional, em Brasília.
Já na obra "Salvai Nossas Almas", simulou um jornal gigantesco impresso em lona, onde eram costuradas notícias de violências domésticas. O artista, natural de um bairro periférico, conta ter crescido cercado das notícias de homicídios. A experiência mais traumática foi quando encontrou os corpos de uma família inteira assassinada no caminho para a escola.
"Levei décadas para me livrar daquela imagem horrorosa. Eu deixei de ter pesadelos só aos 32 anos. Eu me lembro da telha colonial, aqueles focos de luz sob os corpos. Eu fiquei em pânico", conta.
Anos depois, em 2002, a imagem renasceu de certa forma na obra Intolerância, onde oitocentos bonecos recheados de espuma foram empilhados na antiga sede do Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), em referência às torturas e mortes promovidas ali pela Ditadura.
Esses temas, ele diz, se impõem no seu dia a dia, como uma espécie de chamamento. Quando isso acontece, costuma largar os trabalhos em andamento. Diz que perdeu muito dinheiro com a forma não linear de trabalho. "Já fiquei endividado, porque não pego patrocínio, se eu pegar, é o cara que vai estar fazendo a obra", defende.
O currículo de obras impressiona, sempre suscitando polêmica e reflexões, seja com a série de pinturas com terra, em referência ao acidente com césio-137, que aconteceu no bairro onde cresceu, o Popular, ou o grandioso Monumento às Nações Indígenas, na cidade de Aparecida de Goiânia, hoje abandonado e destruído. "Fizeram com o monumento o que fizeram na vida real com os índios", observa.
"Não acho que seja uma arte política. É uma arte. Eu como cidadão, vindo da geração que eu vim, sempre tive a noção que precisava participar do meu país. É saber que você é dessa tribo brasileira."
Arte faz perguntas
Foi no seu ateliê em Aparecida de Goiânia (GO), cercado de árvores do cerrado, que Franco passou boa parte da pandemia e onde "Renascimento" nasceu.
Fazia três meses que estava em intensa quarentena, ainda no início da pandemia, quando prestou atenção no manequim, parado no ateliê há 15 anos, e que estava pendurado num varal para não atrapalhar o processo de outra obra em produção. Quando a noite chegou, o brilho da lua parecia fazer do plástico uma escultura flutuante. Viu leveza. "Eu estava apavorado com a pandemia, mas fiquei capturado por aquilo, o deslocamento da escultura pro ar. Imaginei uma volumetria, uma multidão. Não é algo para se ver no museu. Queria que vissem o contraste daquelas figuras coloridas com o céu." O capuz só veio no final, quando os números de mortes cresciam. "Essa ideia de que a gente dirige a própria vida, o capuz cria essa indagação. A arte faz perguntas."
No centro de São Paulo, o contraste se dá também com os prédios ao redor e chama atenção a metros de distância. De longe, Thalita Gonçalves, 32, achou que se tratava de uma feira de roupas. Quando chegou próximo, não sacou o celular, mas ficou durante bons minutos com a cabeça levantada. Notou que havia manequins masculinos vestidos com roupas femininas, trajes que iam do casual a vestidos de festa.
"Independente da opressão, do sufocamento, do retrato da dor, todos passam por isso", sentenciou. Ela reconhece que o capuz dá uma sensação negativa. "Pode ser uma coisa meio sequestro, não saber que caminho estamos tomando", explica. "Acho que é bom incomodar. Se fosse só bonito, que pensamento reflexivo isso teria trazido?"
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