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'Estrada Sobrenatural': caminhoneiro conta histórias macabras em podcast

O caminhoneiro e podcaster Márcio Coxa, 52 - Fabiana Batista/UOL
O caminhoneiro e podcaster Márcio Coxa, 52 Imagem: Fabiana Batista/UOL

Colaboração para o TAB, em São Paulo

08/02/2022 04h00

Na manhã de 2 de fevereiro, um caminhão saiu do centro de distribuição Suzano Papel e Celulose, em São Bernardo do Campo (SP), depois de descarregar uma carga de 26 toneladas de papel. Na saída, ziguezagueou até a Rodovia Bandeirantes. Seu objetivo era chegar no posto Campeão 68, em Jundiaí (SP) no almoço, e, de noite, em Campinas (SP) para encher o baú com mais papel.

O caminhão era um Sider que aguenta transportar 27 toneladas. O caminhoneiro, Márcio Coxa, 52. Do Paraná, vai e volta de São Paulo duas vezes por semana e, ao longo de 33 anos ao volante, já encarou o asfalto de quase todo país. Só não dirigiu em Manaus. Da América Latina conhece Argentina e Paraguai. Ele ama a estrada.

Márcio também é apaixonado por narrações e novelas de rádio, herança de sua mãe, que as ouvia o dia todo. Não à toa, ele hoje é dono da voz de um podcast que já chegou a meio milhão de execuções: "Estrada Sobrenatural'' conta histórias macabras e já tem seu público fiel. "Contei o primeiro causo em um grupo de WhatsApp sobre uma situação que vivi", explica Márcio. Os amigos virtuais adoraram a história.

Ao ouvir o áudio no grupo dos amigos, Celézio Júnior, profissional de conteúdo digital, ficou surpreso com a narração, tomou a liberdade de editá-la e mostrou ao autor. Dali, não demorou muito para a parceria amadurecer e, em junho de 2020, um mês depois da primeira mensagem de áudio, o episódio já estava no ar com o nome "Noiva Fantasma". Em um Ford 350, no início de sua carreira como motorista, Márcio se deparou com o vulto de uma mulher vestida de noiva -- e o resto é história.

Márcio Coxa e seu caminhão - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Márcio Coxa e seu caminhão
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Família de caminhoneiros

A rotina de trabalho atual de Márcio acontece de segunda a sexta-feira. Às 4h, ele toma café preto e come um pão com ovo. Depois, dirige até as distribuidoras para deixar ou buscar cargas e estaciona apenas para as refeições. "O trabalho pode chegar até a 14h em um dia", conta ao TAB. De noite, o banco de passageiro vira cama e as janelas fechadas com cortina escurecem a cabine, que vira um quarto improvisado.

Filho e irmão de caminhoneiros, Márcio é paranaense de Itambé, norte do estado, e aprendeu a rotina da profissão na infância. "Já que você não quer estudar, vou ensiná-lo alguma coisa", disse o pai. O menino não completou a quinta série do ensino fundamental, mas aprendeu a dirigir antes dos 18 anos.

Enquanto pilota, Márcio sempre tem uma história para contar, seja de experiência própria ou de outrem. Da vida no início de carreira como profissional da estrada, contou que o que mais o marcou foi a primeira viagem à capital paulista sozinho: o então rapaz chegou na selva de pedras apenas com um endereço anotado e parou em todos os pontos de táxis para ir perguntando o caminho.

Um aprendizado que ganhou dos cabeças brancas da família foi o apreço por cozinhar. Apesar de ter a opção de comer em restaurantes de postos de gasolina, os motoristas normalmente preferem fazer sua própria comida. No caminhão de Márcio, por exemplo, há um compartimento lateral onde ficam armazenados um fogão de duas bocas, quatro panelas, alguns mantimentos e a água potável. O galão de 20 litros e o botijão de gás são acoplados na parte inferior do compartimento.

Márcio coloca seu feijão de molho na parte da manhã - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Márcio coloca seu feijão de molho na parte da manhã
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Café e um dedo de prosa

Nem só de estrada vive o homem. Além dela, Márcio é um eterno apaixonado pelo rádio. O entusiasmo é tanto que apenas na cabine de trabalho são nove caixas de som — uma fica de reserva. No intervalo de descanso pós refeição ou ao volante, ele não perde a chance de ouvir músicas ou programas da frequência AM.

Esse sentimento aflorou ainda na infância. Junto com os caminhõezinhos de brinquedo, Márcio "pegava uma lata e fazia de microfone como se fosse o locutor". Narrava causos como faziam seus ídolos Gil Gomes, Eli Corrêa e Cícero Gomes — e está tão apaixonado pela vida de podcaster que pensa nas histórias 24h por dia. Quando não está gravando, elabora os causos na cabeça ou pesquisa sobre histórias macabras na internet.

Márcio diz que não é difícil encontrar um causo sobrenatural. Já viveu alguns e é um bom ouvinte. Nos momentos de almoço ou jantar, ele convida colegas para fazer uma refeição ou tomar um café e ter uma prosa. É daí que saem as melhores conversas.

Márcio Coxa na estrada - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
Márcio Coxa na estrada
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Estrada sobrenatural

Quando parado na beira da estrada, a passagem de veículos — seja caminhão ou carro de passeio — faz a Sider balançar. A sensação na cabine é de que ela pode tombar a qualquer momento. O barulho dos motores é outro elemento sempre presente e, seja para descansar ou trabalhar no podcast, Márcio prefere fechar as janelas.

É impressionante a forma com a qual o podcaster cria sua narrativa. Geralmente, ouve a história e passa dias, elucubrando cenários, pesquisando personagens e recontando os causos várias vezes para si mesmo. Tudo sem papel e caneta, na memória mesmo.

Há histórias em que sente a necessidade de procurar quem a contou mais vezes. "O Último Passageiro" é uma delas: no trabalho de vai e volta e em um baile, o motorista viu um homem que, depois, descobriu não ser real. O causo é de um caminhoneiro que, na velhice, decidiu ser taxista. Personagem e autor se encontraram quatro vezes para que mais detalhes fossem inseridos na narrativa.

As gravações dificilmente acontecem durante o dia porque Márcio prefere maquinar sobre o podcast durante as madrugadas. O ritual é sagrado — ele fecha todas as janelas e cortinas da cabine, pois, além de interferência de som, prefere evitar distrações externas.

Uma vez isolado e concentrado, o motorista liga o gravador do celular e começa a falar. Para deixar a narrativa mais atraente, Márcio prefere usar uma linguagem íntima. O podcast conserva o tom de conversa entre amigos, o que talvez seja o segredo para cativar um público tão diverso.

O cantor César Menotti já chegou a indicar o "Estrada Sobrenatural'' em uma entrevista ao "PodePah'', um dos podcasts mais célebres do Brasil. Há também quem assine uma mensalidade para participar de um grupo exclusivo criado por Márcio. Esses ouvintes têm acesso exclusivo a mensagens do próprio podcaster, que envia áudios com causos que dificilmente virarão episódios.

O caminhoneiro e podcaster Márcio Coxa, 52 - Fabiana Batista/UOL - Fabiana Batista/UOL
O caminhoneiro e podcaster Márcio Coxa, 52
Imagem: Fabiana Batista/UOL

Acreditar ou não?

Viver uma história sobrenatural não é comum a todos. Márcio tem um repertório carregado de vultos e de gente morta. Além da "Noiva Fantasma", diz que chegou a ver e conversar com o cunhado antes de saber de seu assassinato; também relata ter sentido a presença da mãe minutos antes lhe darem a notícia sobre sua morte. "Quem conhece assombração? Você precisa só acreditar mesmo", explica ele.

Desde que começou as gravações, o caminhoneiro amadureceu suas narrativas e tem, cada vez mais, percebido a responsabilidade ao contar algo. "Estou lidando com sentimento, fé, e o ouvinte precisa, muitas vezes, ter sua religião respeitada". Além disso, Márcio deixou de apenas contar uma situação vivenciada por alguém e passou a também inventá-las.

"Perdidos no Tempo", publicado em agosto de 2020, é uma ficção inspirada na música "Minha História", de Chico Buarque — a original é a música "Gesù Bambino" do italiano Lucio Dalla. Na história de Márcio, uma família fica presa em uma ilha na tempestade e vê mãe e filho em uma casa abandonada. A casa existia, mas a família já havia morrido há anos.

Sensível ao que vai contar, o podcaster afirma que não gosta de publicar conteúdos que envolvam mortes violentas. Diz que engavetou tudo que foi gravado nesse sentido e busca no sobrenatural o que causa suspense e medo, não repulsa. "Não quero que o ouvinte tenha uma experiência de sofrimento".

Entusiasmado com o novo trabalho que desenvolveu, Márcio chega cada vez mais perto de realizar seu segundo sonho de infância. "O podcast faz com que eu me sinta um radialista".