Laptop, diplomas, pets: o que deu tempo de os ucranianos levarem embora
Tatiana teve tempo de se preparar. Trouxe seus diplomas e certificados dos cursos de cosmetologia. Anna só teve meia hora. Empacotou o laptop e um presente dado pela melhor amiga.
Em cinco minutos, Olga recolheu poucas peças de roupa e carregou Micha, o gato de estimação. Já a família de Sabir saiu com a roupa do corpo: só tiveram tempo de entrar no carro e buscar refúgio depois de três bombas caírem em frente ao prédio onde moravam ele, a mulher e as quatro filhas.
As fotos e vídeos que circulam na imprensa e redes sociais retratam a agonia de quem está deixando tudo para trás na Ucrânia, sem certeza que encontrará o lar de pé, diante da ofensiva russa. No desespero, o que é essencial? O que deu tempo de trazer? Mais do que isso: quais são os itens sentimentais carregados pelos refugiados ucranianos, ainda duvidosos se voltarão a ver entes e amigos queridos?
De acordo com o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), já são mais de três milhões de ucranianos fugidos após a invasão russa, além de outras 15 milhões de pessoas deslocadas internamente. A reportagem do TAB visitou dois abrigos na cidade de Ujhorod, no oeste do país, a 6 quilômetros da fronteira com a Eslováquia, ainda considerada um local seguro.
Num ginásio poliesportivo e em uma escola do ensino médio, a reportagem conversou sobretudo com agora ex-residentes da capital Kiev e arredores, da área de Donbass e de Donetsk, além de Carcóvia. Junto a Mariupol, essas regiões se converteram nos mais importantes fronts da guerra na Ucrânia. Onde os bombardeios são diários e os planos de evacuação, perigosos ao extremo.
São nove relatos de quem já previa o pior e se planejou, de quem teve que pensar rápido ou de quem nem teve tempo para nada, focado na difícil missão de se manter vivo.
Vasylyi Pyatak, 65, refugiado de Carcóvia
"A evacuação foi muito rápida. Tenho dificuldade para andar, imagina então pensar no que eu tenho que trazer? Me agasalhei o máximo que pude e coloquei o celular e o passaporte no bolso", contou o aposentado, ainda com a versão antiga e verde do passaporte ucraniano, sobre o processo de resgate montado por voluntários e autoridades locais rumo à estação de trem.
"Demorei dez dias para chegar até aqui", relata.
De Carcóvia a Ujhorod, do leste ao oeste da Ucrânia, são 1.300 km de distância, trajeto que em tempos normais demoraria não mais que 24 horas de trem. "Tenho algumas fotos no celular e é só isso", diz, sentado no colchão que agora é tudo que pode chamar de lar. Vasylyi não tem como arcar com aluguel e continua sem contato com a família. Depende exclusivamente da ajuda de voluntários locais. "Não sei se vou encontrar a minha casa, não sei se vou encontrar mais com meus filhos. É tudo muito incerto."
Olga Vrarova, 71, refugiada de Carcóvia
"Eu moro, quer dizer, morava no subúrbio de Carcóvia, num conjunto residencial. O bombardeio era constante, de manhã até de noite. Até que um míssil atingiu o quinto andar do prédio em frente. Era a hora de sair. Como não tinha como carregar mais que uma mochila, coloquei o máximo possível de roupa para me aquecer, peguei o passaporte, a Micha e me juntei aos outros", conta a aposentada que, sozinha, enfrentou um duro processo de evacuação que levou sete dias.
"As pessoas deixaram rapidamente o local em meio às chamas e escombros. Meu vizinho de frente morreu. Vi seu corpo estirado no chão. Não dá tempo de despedir nem nada. É horrível, não tem como descrever", completa, no momento em que tradutor, repórter e produtora não seguram as lágrimas. "Por favor, diga ao mundo que os russos estão atacando civis. Estão nos matando. Por favor. Algumas pessoas ainda não acreditam."
Iryna Pashkova, 46, refugiada de Kramatorsk, Donetsk
"Eu já sabia que isso ia acontecer outra vez. Moro na região de Donetsk, já sabemos por lá como é a guerra", conta esta manicure, que já tinha alugado um carro para transportar uma pequena mala com itens básicos, seus e do seu marido — eles não têm filhos. "Os documentos estavam sempre no bolso. Para mim, as únicas coisas realmente importantes para trazer na evacuação eram o Villy e o Bonnya", diz ainda, com os dois cães da raça pincher nos braços.
"Nem devolvi o carro. Quando os bombardeios e ataques ficaram mais fortes e consecutivos, sabíamos que era a hora de partir", relata. "Nessas horas tudo fica para trás. Não é a primeira vez que tenho de fugir de bomba. Dirigimos até a estação de trem, com todo cuidado possível. Quando o trem chegou, ficou tudo para trás. Carro alugado, casa e memórias da minha terra natal para onde espero poder voltar outra vez na vida."
Anna Garbuz, 23, refugiada de Carcóvia
"Tudo aconteceu muito rápido. Meus pais me disseram que eu devia ir para bem longe dali, porque tinha uma carreira para seguir. Eles iriam para outro ponto da cidade ficar com amigos, junto ao meu irmão mais novo. Meus tios pediram que eu trouxesse minha sobrinha de sete anos comigo. Não sabiam o que aconteceria no futuro. Quando escutamos o trem chegando, perto de casa, montei a mala muito rápido: algumas mudas de roupa e meu laptop. Sabia que precisaria encontrar trabalho para seguir adiante e iria precisar do meu computador", explica esta estudante de engenharia elétrica, que estava no último ano do curso e demorou oito dias para chegar a Ujhorod.
"Lembrei de trazer um bichinho de pelúcia, presente de aniversário que ganhei da minha melhor amiga, já que eu não sei se a gente vai se encontrar de novo nessa vida", lembra. "É um modo de a gente permanecer juntas. Nos conhecemos desde crianças. Meu plano agora é ir para a Eslováquia. Tive de deixar a minha sobrinha num lar para crianças sozinhas. Foi uma escolha muito difícil, mas ouvi dizer que outras pessoas fizeram o mesmo. Não temos muita opção."
Tatiana Begova, 44, refugiada de Lisichansk, Donbass
"Antes mesmo de a guerra estourar, mandei meu filho para Odessa. Já sabíamos que estaria mais segura que onde estávamos", diz a cosmetologista, outra experiente em conflitos, natural da área separatista ucraniana, em guerra desde 2014. "Eu, meu marido e minha mãe já tínhamos as malas preparadas. O mais importante era trazer meus diplomas e certificados na área cosmética, além de alguns equipamentos caros que uso para tratamento de pele. Sabia que seria difícil voltar e que teria de encontrar trabalho", explica, com a placidez de quem se acostumou com a violência.
"Quando tomamos a decisão de deixar nossa casa, já que os vizinhos falavam de um corredor para a estação de trem, tínhamos tudo pronto. Caminhamos uma hora, cerca de 2,5 quilômetros, até a estação de trem. Agora é descansar um pouco e recomeçar. A viagem durou sete dias. Estamos planejando aos poucos os próximos passos."
Liydmilia e Polina Bykov, 46 e 17 anos, refugiadas de Kiev
"Foi uma decisão normal. Não podíamos esperar a guerra chegar até nós, que bombardeassem nosso prédio. Aguardávamos apenas o momento certo", conta a cabeleireira, outra refugiada que teve a calma necessária para planejar a evacuação.
"Além do meu marido e da minha filha, nada mais era importante do que o meu gato, o Billy", diz, resiliente. Seis dias depois de partir de Kiev, enfim, sentia-se mais segura.
Com eles, nada de fotografias em papel. "Está tudo no celular. Só trouxemos passaportes." A filha Polina, no entanto, não poderia deixar um item de fora da mochila. Em 12 de fevereiro, pouco antes da invasão russa, saiu para jantar com Andriy, seu namorado há pouco mais de dois meses. Como presente de dia dos namorados, "ele me deu esse bichinho de pelúcia que agora dorme comigo. Ele ficou em Kiev, seguimos em contato e só quero pensar que isso tudo vai acabar e logo mais vamos estar juntos outra vez".
Sabir Rustanov, 54, refugiado de Carcóvia, com parte da família
"Antes mesmo de a guerra começar, nossa filha mais velha, a Monika, desenvolveu uma espécie de anorexia nervosa. Tudo o que comia, vomitava. Aos poucos, já não falava muito. Respondia só sim ou não. Percebemos eu e minha esposa que seria muito complicado qualquer plano de evacuação com ela nesse estado. Resolvemos esperar", conta Sabir, ainda se acostumando à ideia de cruzar a fronteira e, pela primeira vez na vida, ir a um país estrangeiro, a Eslováquia, com três das quatro filhas.
Depois do nono dia de guerra, três bombas caíram no conjunto residencial onde a família vivia. "Duas explodiram no prédio em frente ao nosso, matando o filho de um grande amigo. Outra bomba ficou ali, no chão, sem explodir. Já era, não dava mais para esperar nada. Fomos todos para o carro e corremos para o estacionamento de um supermercado, a mais ou menos dois quilômetros de casa", conta Sabir.
"Saímos com a roupa do corpo e, depois de 12 horas esperando, com as coisas um pouco mais calmas, dirigi para cá. Só que a Monika começou a tremer muito, a vomitar. Não tinha condições", lembra ele, emocionado, exibindo as carteiras de identidade da família, único item que teve condições de trazer. Nem os passaportes teve tempo de pegar. "Foi quando tomamos a difícil decisão de nos separar. Minha esposa ficou com ela no estacionamento do prédio de uns amigos. Estamos em contato e esperando que ela consiga ter forças, para que cheguem até a estação de trem e venham para cá."
Lola Rustanov, 15, refugiada de Carcóvia
"Eu, sim, consegui trazer algo", interrompe a entrevista a jovem Lola, que sonha em ser designer. "Gosto de um menino, e pouco antes da guerra, ele me deu um anel. Tinha deixado na minha gaveta. Abri rapidamente e botei no bolso, depois que estouraram as bombas", completa. "Eu não sabia disso", diz o pai, entre risos e ciúmes. "Resolvi colocar junto ao meu colar. É uma forma de estarmos juntos."
Fica um silêncio no ar, mas Lola não se constrange com a revelação. "Há três semanas que ele me deu esse anel de presente. A gente se conhece desde a primeira série [ensino fundamental]. A gente sempre se olhou, depois foi ficando amigo e há pouco tempo ele me deu esse anel. Não podia ficar lá, na guerra". O pai, com muitos outros problemas em mente, abraça a filha e lhe dá um beijo na testa.
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