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Ujhorod, na Ucrânia, vive boom imobiliário em plena invasão russa

Outdoor em Ujhorod, na frente do "Hotel Ujhorod", na Ucrânia, onde se lê "Esta é a minha terra e não vou a lugar nenhum". Em amarelo, "doe para a Ucrânia" - André Naddeo/UOL
Outdoor em Ujhorod, na frente do 'Hotel Ujhorod', na Ucrânia, onde se lê 'Esta é a minha terra e não vou a lugar nenhum'. Em amarelo, 'doe para a Ucrânia'
Imagem: André Naddeo/UOL

André Naddeo

Colaboração para o TAB, de Ujhorod (Ucrânia)

10/03/2022 11h51

Café expresso na mesa, supermercados abertos, caixa eletrônico funcionando, ônibus circulando, posto com gasolina e pagamento com cartão de crédito. A pacata Ujhorod, no oeste da Ucrânia, tornou-se uma espécie de oásis em meio ao caos da invasão russa.

O clima nas ruas é de absoluta tranquilidade, de vida normal. Justamente por isso, a cidade conseguiu um feito, no mínimo, curioso em tempos tão hostis: viver um deflagrado boom imobiliário no momento em que Vladimir Putin avança com seus homens e centraliza as atenções em um mundo temeroso por uma terceira guerra mundial.

Para explicar a fuga para Ujhorod, é fundamental entender duas de suas características: a vizinha Eslováquia fica a apenas 6 quilômetros de distância e, em geral, muitos ucranianos ainda estão reticentes em deixar o país, esperançosos de que Volodomyr Zelensky e os invasores possam estabelecer um cessar-fogo.

Café na área central de Ujhorod, na Ucrânia: acesso a wi-fi liberado e tranquilidade do lugar reforçam imagem de 'oásis' no meio da guerra - André Naddeo/UOL - André Naddeo/UOL
Café na área central de Ujhorod, na Ucrânia: acesso a wi-fi liberado e tranquilidade do lugar reforçam imagem de 'oásis' no meio da guerra
Imagem: André Naddeo/UOL

A especulação imobiliária existente por ali hoje se baseia na estratégia de que a família pode permanecer unida, sem que o pai tenha de permanecer no país para lutar e ver seus entes cruzarem a fronteira sozinhos.

"Um apartamento de um ou dois quartos, mais ou menos, que antes custava cerca de 250 euros o aluguel, hoje gira em torno de 1000 euros por mês", explica Aleksander*, nome fictício do guia ucraniano que acompanhou a reportagem de TAB por Ujhorod, que não quer que seu nome saia em lugar nenhum. "Isso aqui virou uma loucura de todas as formas possíveis."

A população de Ujhorod é de 120 mil habitantes, mas desde o início da invasão russa, há 15 dias, 100 mil pessoas se deslocaram para a cidade fronteiriça, segundo a prefeitura local. A cidade dobrou de tamanho.

Grupo de Telegram 'Ajuda para Zakarpattia' já reúne 17 mil membros. Quase todos procuram casa para alugar na região - André Naddeo/UOL - André Naddeo/UOL
Grupo de Telegram 'Ajuda para Zakarpattia' já reúne 17 mil membros. Quase todos procuram casa para alugar na região
Imagem: André Naddeo/UOL

Fila de carros para entrar

Para conseguir chegar à zona ainda segura, vídeos em redes sociais, especialmente no TikTok, mostram filas de 60 quilômetros de carros esperando o sinal verde das autoridades locais para que possam entrar na região e não haja caos.

"Olha este anúncio aqui", mostra Aleksander. "'Casal busca apartamento para período de três a seis meses, urgentemente'", aponta com o dedo para um grupo criado no Telegram com o nome "Ajuda para Zakarpattia", nome da região onde está situada Ujhorod. Em menos de duas semanas, o grupo já contava com quase 17 mil membros.

"Pessoas daqui que alugavam apartamento antes da guerra estão sendo 'expulsas' pelos proprietários, que encarecem o valor do aluguel da noite para o dia e acabam alugando para gente da capital [Kiev] ou de outras regiões mais ricas do país. É um processo de gentrificação. Nem todo mundo pode pagar", explica ainda.

"Pai, mãe e um filho recém-chegados buscando quarto e sala", dizia outra mensagem. "Mais um ladrão, tomem cuidado", dizia ainda um outro post. Onde existe crise humanitária também existe oportunismo: no desespero, pessoas pagam o mês adiantado de depósito para garantir o aluguel, mas o dinheiro vai parar na mão de criminosos que não são os reais proprietários.

Alimentos e papinhas infantis no abrigo da prefeitura em Ujhorod, na Ucrânia -  Khristina Hubska/UOL -  Khristina Hubska/UOL
Imagem: Khristina Hubska/UOL
Casal em abrigo de prefeitura em Ujhorod, na Ucrânia - Khristina Hubska/Divulgação - Khristina Hubska/Divulgação
Casal em abrigo de prefeitura em Ujhorod, na Ucrânia
Imagem: Khristina Hubska/Divulgação

Sem alternativa

"Não vou me submeter a isso, não tenho condições", dizia uma senhora de idade, olheiras profundas, que como muitos num país em guerra, também não quis se identificar. "Vai entrevistar os mais jovens", explicou.

Ela está na porta de um abrigo estabelecido pela prefeitura, num ginásio esportivo local, destinado àqueles que não podem arcar com preços tão altos de aluguel.

A mulher se despede reclamando. "Vim de Mariupol com minhas filhas e netos. Nossa região é pobre, nossa única opção é esse abrigo comunitário e esperar o que vai acontecer."

Rodran e Daryna Syrotkin, com seus três filhos, na estação de trem de Ujhorod, na Ucrânia - André Naddeo/UOL - André Naddeo/UOL
Rodran e Daryna Syrotkin, com seus três filhos, na estação de trem de Ujhorod, na Ucrânia
Imagem: André Naddeo/UOL

Na estação de trem de Ujhorod, recém-chegados de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, Rodran e Daryna Syrotkin, com os três filhos, desistiram de ficar na cidade.

O plano não deu certo depois de entenderem que não queriam fazer parte da distopia imobiliária. "O plano era ficar, mas depois de pesquisar na internet e fazer alguns contatos, entendemos que era melhor deixar o país", explica Daryna, professora de natação ao lado do marido, que é contador.

"Nossa vantagem é que temos três filhos. Nesse caso, eu posso deixar a Ucrânia, não preciso ficar", explica Rodran sobre a exceção aos pais de três filhos ou mais. "Nosso plano agora é cruzar para a Eslováquia e chegar até Praga, na República Tcheca. Temos alguns conhecidos por ali", explica ele, antes de alcançar o ônibus que levaria os cinco até a fronteira. "Nosso plano é voltar tão logo tudo isso acabe. Não queremos deixar a Ucrânia."

Outdoor com os dizeres 'obrigado aos defensores da Ucrânia', na cidade de Ujhorod - André Naddeo/UOL - André Naddeo/UOL
Outdoor com os dizeres 'obrigado aos defensores da Ucrânia', na cidade de Ujhorod
Imagem: André Naddeo/UOL

Prazo de validade

O limite estabelecido pelas autoridades locais na Ucrânia é que cada cidadão pode retirar dos caixas eletrônicos um limite máximo de 350 euros diários — ou 11.650 grivnas, a moeda local (ou aproximadamente R$ 1.950).

Cada carro, no momento, pode abastecer com até 20 litros de combustível. Não é possível comprar euro nas casas de câmbio, mas vendê-los pela moeda local. Também não existe inflação ou corrida aos supermercados, pelo menos até o momento. A rede de telefonia funciona nessa região e todos estão devidamente conectados.

"A questão é: até quando? Eu vivo aqui há 35 anos e não sei por quanto tempo mais isso vai durar. É claro que todos estão atualizados com as notícias, e tudo pode parecer tranquilo aqui, mas, no fundo, o que todos nós estamos pensando é: até quando?", confessa Aleksander, pai do pequeno Roy, de apenas cinco anos de idade.

Abrigo da prefeitura em Ujhorod, na Ucrânia - Khristina Hubska/Divulgação - Khristina Hubska/Divulgação
Idoso em abrigo da prefeitura em Ujhorod, na Ucrânia
Imagem: Khristina Hubska/Divulgação