Topo

'Tô no jeito': médicos brasileiros tentam se juntar à resistência ucraniana

Os médicos Edvaldo Barros e Weliton da Silva, os amigos que querem ir para a guerra na Ucrânia - Leandro Aguiar/UOL
Os médicos Edvaldo Barros e Weliton da Silva, os amigos que querem ir para a guerra na Ucrânia
Imagem: Leandro Aguiar/UOL

Leandro Aguiar

Colaboração para o TAB, de Brasília

06/03/2022 04h01

Na requintada e ensolarada vizinhança do Lago Sul de Brasília, os amigos Edvaldo Barros, 36, e Weliton da Silva, 34, aguardavam ansiosos por uma resposta, ao lado do interfone da Embaixada da Ucrânia no Brasil.

O que fosse dito pelos burocratas poderia alterar o rumo de suas vidas: eles estavam ali para se voluntariar a integrar, na qualidade de médicos, as Forças Armadas ucranianas, que resistem desde o dia 24 de fevereiro à invasão das tropas russas.

Depois de alguns minutos de espera, surgiu um funcionário loiro à porta. Com poucas palavras, ele apenas arranhava o português. Agradeceu a boa vontade dos dois, mas explicou que a embaixada não tem realizado alistamentos, e aconselhou que eles procurassem o ministério das Relações Exteriores do Brasil ou o ministério da Saúde para mais orientações.

A primeira negativa não esmoreceu os ânimos de Edvaldo e Weliton, que já percorreram quase 4 mil quilômetros em sua tentativa de se juntar a Legião Internacional de Defesa do Território, criada pelo governo ucraniano para reunir não-ucranianos dispostos a fazer frente aos ataques da Rússia. Residentes em Boa Vista (RR), os dois tomaram um avião assim que souberam da possibilidade de atuar no front.

Preparados para a guerra

Na quinta-feira (3), a página de Facebook das Forças Armadas da Ucrânia divulgou a chamada para os voluntários que queiram se unir à Legião Internacional. "Se a sua cidadania é outra que não a ucraniana, mas você está com a Ucrânia contra a Rússia, se rezar não é o suficiente para você, se você tem experiência de combate ou quer adquiri-la com os bravos defensores ucranianos, ESSA É A HORA DE AGIR!", exclama uma parte do comunicado.

Em poucos dias, mais de cem brasileiros contataram a embaixada ucraniana em resposta à convocação. Em nota à imprensa, o órgão disse que "não está fazendo alistamento" e tampouco atua na "campanha para adesão a esta formação militar".

Edvaldo e Weliton, que até sexta-feira (4) não sabiam disso, receberam, dias atrás, em um grupo de WhatsApp que reúne médicos brasileiros formados no exterior, a notícia de que profissionais da saúde eram bem-vindos para atuar nas áreas de conflito. Sem hesitar, compraram a passagem para Brasília em busca de informações sobre como proceder.

Ambos de porte atlético e formados em Medicina em uma universidade pública venezuelana, consideram-se altamente capacitados para atuar em uma zona de guerra. De 2012 a 2019, quando os dois colegas viveram na Venezuela, eles contaram ter vivido muitas situações semelhantes às vistas na Ucrânia.

"Quando o conflito civil estourou, recebemos muitos feridos no hospital da universidade. Realizamos todo tipo de procedimento de emergência. Às vezes, no caminho para o trabalho, um protesto violento bloqueava nossa passagem", recorda-se Weliton. Nesses tempos, chegaram a ficar até uma semana sem água, luz ou gasolina. A escassez de alimentos e produtos de limpeza era constante.
"Vimos pessoas mortas e a repressão letal contra os manifestantes que atiravam coquetel molotov na polícia. Essa experiência nos mostrou a diferença que um médico pode fazer nessas horas e nos encorajou na tentativa de ir à Ucrânia", afirma Weliton, que ressalta que, além dessa bagagem, prestou o serviço militar obrigatório no Exército brasileiro e sabe manejar armas.

O médico Edvaldo Barros, na fronteira do Brasil com Venezuela - Edvaldo Barros/Arquivo Pessoal - Edvaldo Barros/Arquivo Pessoal
O médico Edvaldo Barros, na fronteira do Brasil com Venezuela
Imagem: Edvaldo Barros/Arquivo Pessoal

Nada de Revalida

Não só a vontade de ajudar motiva os dois médicos brasileiros: eles ainda não conseguiram revalidar seus diplomas de medicina no Brasil, e viram no distante leste europeu o lugar possível para pôr em prática seus conhecimentos.

Impedido de clinicar no Brasil, Edvaldo não pode ouvir falar nas regras para a revalidação do diploma do país sem se indignar. "O ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina boicotam nossa atuação por uma razão classista, para que só o filho do rico possa ser médico."

Sem conseguir exercer em seu país a profissão para a qual estudou, atuou até 2021 como guarda municipal, função que conciliou com períodos de até seis meses de atendimentos médicos no lado venezuelano da fronteira amazônica.

Se enquanto guarda municipal Edvaldo policiou as ruas, atuou em salvamentos aquáticos e em reintegrações de posse em fazendas de Roraima - quando efetivamente presenciou conflitos e disparou balas de borracha e bombas de efeito moral contra os posseiros -, sua experiência na fronteira venezuelana, onde só se pode chegar de helicóptero, foi a de "uma verdadeira guerra em tempos de paz".
"Lá atendemos indígenas, garimpeiros, grileiros? É uma zona em permanente conflito armado", afirma. Foi ali, e também nos hospitais de campanha erguidos para o enfrentamento ao covid-19, que ele compreendeu sua vocação para trabalhar em circunstâncias das quais a maioria das pessoas prefere fugir.

"Essa parte militar, da guerra, de salvar quem precisa, está no meu coração. Faço isso sem pensar nas consequências", admite. Formado também em Educação Física, Edvaldo diz estar preparado "mais do que qualquer um" para ir à Ucrânia. "A técnica militar eu tenho, não tenho medo, mas vontade de rastejar até o campo de batalha para buscar um ferido. O que falta pra mim é só ir pra guerra."

Alistamento e insistência

Edvaldo e Weliton se instalaram em um hotel em Brasília e pretendem persistir no combate burocrático nos próximos dias, inclusive para tratar com "com o responsável pela embaixada, não com um auxiliar", nas palavras de Edvaldo.

Se tudo sair errado e a Ucrânia não arcar com os custos da viagem, Welinton diz que repensará o alistamento. Já Edvaldo apelará para seu "plano B". "Vou desenrolar uma maneira de ir por conta própria. Traçar um mapa da Europa, entender por qual país é melhor chegar, e levar toda a minha documentação. Tenho passaporte, tenho o dinheiro da passagem, tenho o preparo físico, tenho tudo. Eu tô no jeito", diz, mal contendo a animação.