'Viemos pra ficar': pela 1ª vez, três reis de bateria desfilam na Sapucaí
Há algo de diferente na realeza do Carnaval carioca. Após o hiato de dois fevereiros sem desfiles, devido à pandemia, caberá justamente a um homem a tarefa de conduzir a primeira bateria a atravessar a Marquês de Sapucaí. Jorge Amarelloh estreia como rei da escola Em Cima da Hora, que abre o desfile do Grupo de Acesso nesta quarta-feira (20).
Posto cobiçado por atrizes, aspirantes a celebridade e musas fitness, o cargo passou a ser disputado por homens. Pela primeira vez, a avenida vai assistir a desfiles de três agremiações com reis de bateria à frente dos seus ritmistas. Além de Jorge, Johnatan Avelino vem à frente da bateria da Lins Imperial, e Juarez Souza na Acadêmicos do Sossego.
"É uma mistura de euforia com realização. No mundo do samba, já fui da comissão de frente, destaque de alegoria, passista... E por mais que eu sonhasse com a possibilidade, não sabia que podia ir além", diz Jorge, de 27 anos, professor de dança.
O maquiador goiano Johnatan Avelino, 31, conta que ser destaque no carnaval carioca era ilusão longínqua. Desde criança acompanhava os desfiles pela TV. Só em 2010 passou a frequentar a Sapucaí. "Fiquei sambando na arquibancada. Até que em 2015 meu vídeo viralizou, chegou a 2,5 milhões de acessos, e começaram a surgir convites. Meu presidente teve muita coragem de botar a cara a tapa e me coroar", diz ele, que debuta com a coroa na abertura dos desfiles na quinta-feira (21). Seu "presidente" é Flávio Mello, único dirigente assumidamente gay entre todas as escolas que passam pela Sapucaí.
Um rei quase médico
Johnatan recebe Jorge na quadra de sua escola, no bairro do Lins, subúrbio carioca, para a sessão de fotos desta reportagem. Eles costumam frequentar as quadras uns dos outros como forma de mostrar que não há rixa entre os homens. "Até agora não teve qualquer rivalidade entre a gente", garante Johnatan. "É que os três estão na mesma vibe. Como é a nossa estreia, a expectativa pela energia é a mesma. Sempre que a gente se encontra, há carinho e respeito", continua Jorge.
O terceiro rei só chega à cidade na véspera dos desfiles. O cearense Juarez Souza, 36, rei da Acadêmicos do Sossego, encerra a primeira noite de apresentações do Grupo de Acesso. Ele esteve no final de março no ensaio técnico na Sapucaí, mas como está concluindo a faculdade de medicina em Fortaleza, o internato do curso não lhe dá o luxo de se jogar para valer na festa.
"Os homens chegam para somar, não para competir. Se tem rainha, por que não ter rei? É preciso a corte completa! É um novo momento do Carnaval", aposta Juarez, que pretende se especializar em plástica reconstrutiva.
Sua escola, com sede em Niterói, costuma ser progressista nesse tipo de inovação. Em 2019, colocou um homem como porta-bandeira. "Chegou a hora de os gays ocuparem seus espaços", disse à época o presidente Wallace Palhares.
Preconceito no samba
O desafio maior, eles concordam, é convencer os torcedores apaixonados de que o espaço firmado pela hegemonia feminina também pode receber barbudos. "Ainda recebo alguns comentários maldosos. Percebo os burburinhos ao redor, até pelo meu jeito de sambar, porque não sambo de forma masculina. Eu sambo com minha alma, num estilo mais feminino", diz John, que também é muso da São Clemente, escola do grupo especial. Já Jorge opta por não exagerar nos gestos e requebrados. "Prefiro os trejeitos masculinos, cumpro esse personagem no samba", afirma ele, que também desfila na Paraíso do Tuiuti.
A apreensão deles é grande quanto à reação do público na Sapucaí. Juarez ainda se assusta com os comentários homofóbicos nas redes sociais. "Fiquei com receio dos ritmistas. A maioria é homem, mas para minha felicidade, a bateria me recebe e me acolhe", afirma.
Reis comprometidos
A ainda tímida presença masculina à frente dos ritmistas - majoritariamente homens - pode causar desconforto entre os tradicionalistas do Carnaval. A mídia costuma dar destaque a disputas por destaque, rotina de ensaios, exercícios em academia e rígidas dietas. Para os rapazes, nada disso parece ter sentido. "Não paguei nada pra estar aqui", diz Jorge.
Até o assédio, eles dizem, não é uma realidade. Casado com Alex Coutinho, diretor de ala da Paraíso do Tuiuti, Jorge tem um filho de 7 meses, adotado recentemente. "Cada um respeita o espaço do outro para não ter problema", diz. Morando há dois anos com o chef de cozinha Phelipe Carvalho, Juarez quer oficializar a relação. "Somos namorados há seis anos, chamo ele de marido. Primeiro termino a faculdade e depois a gente vai pensar nessa outra festa."
Único solteiro do trio, John terá a companhia da mãe na estreia. "Muita gente se emocionou quando ela veio na minha coroação, vai desfilar quase do meu ladinho", diz o maquiador.
'Quero vir pelado'
Outro assunto comum às rainhas - e agora aos reis - do Carnaval é o segredo em torno da fantasia. John entrega algumas pistas. "Falei com o diretor: 'Não me coloca muito vestido, quero vir pelado'! Ele topou. O Carnaval é um meio machista, então temos que quebrar isso de alguma forma. Por que só a mulher pode vir descoberta? Minha fantasia é ousada, quase um tapa-sexo", diz ele, que defenderá o enredo "Mussum pra Sempris - traga o mé que hoje com a Lins vai ter muito samba no pé!", em homenagem ao comediante Mussum, sambista do Originais do Samba e humorista d'Os Trapalhões.
No enredo "Visões xamânicas", Juarez diz que já deu spoiler da vestimenta no ensaio técnico, quando desfilou de indígena. Já Jorge prefere um estilo comedido. "Sou tradicional. Venho representando meus meninos de forma masculina, um rei padrão", brinca ele, que defenderá o enredo "33 - Destino Dom Pedro 2º".
Poucos reis
O cargo, que não vale nota no julgamento oficial, é valorizado pelas escolas como eficaz ação de marketing. Algumas pedem patrocínio para suprir os gastos com a fantasia dos ritmistas, outras utilizam a mídia espontânea para atrair investidores ao desfile.
O primeiro rei de bateria no país foi o coreógrafo Zé Reinaldo no Carnaval de 1994, desfilando pela Acadêmicos do Grande Rio. Na época, quando a discussão de gênero ainda não fazia parte do repertório social, ele foi classificado pela escola como "rainha". A transmissão da TV Globo ignorou. Pela mesma agremiação, o promoter David Brazil foi coroado rei em 2014, compartilhando o posto com a atriz Susana Vieira.
Em São Paulo, o tabu foi quebrado pelo ator Miguel Falabella, à frente da bateria da Nenê de Vila Matilde em 1999. A imprensa, à época, o noticiou como "padrinho" e "mestre de cerimônias". Somente em 2007 surgiu outro homem, agora aclamado "rei": o veterinário Daniel Manzioni, na Acadêmicos de Tatuapé. Não durou muito no posto.
Em 2013, a Unidos de Vila Santa Teresa, então no Grupo de Acesso carioca, quebrou outro tabu ao coroar a ex-BBB Ariadna Arantes como a primeira rainha trans de uma bateria.
Pela falta de representatividade masculina no posto, os reis atuais citam mulheres como musas inspiradoras. Jorge gosta de se espelhar nas que vieram de comunidades: Rayssa Oliveira (da Beija-Flor de Nilópolis), Evelyn Bastos (da Mangueira) e a princesa Mayara Lima (da Paraíso do Tuiuti).
John destaca Arlindinho, filho do cantor Arlindo Cruz, como "excelente compositor de sambas", e o influencer Dam Menezes, que comenta a arte das rainhas de bateria. "Pra mim, eles também são reis!", elogia. Já Juarez tem como referência as já aposentadas da folia Luma de Oliveira (ex-Viradouro) e Fabia Borges (ex-Unidos da Tijuca). "Trouxeram carisma e estilo para o cargo", diz.
Os reis gays não querem ser marcados como exceção à regra. "Viemos pra ficar! Que novas portas se abram para outros homens", afirma John. "As inovações começam no Grupo de Acesso, se solidificam e depois chegam ao grupo principal. As pessoas se acostumam aos poucos com a ideia. Pode apostar, muitos homens ainda vão reinar no Grupo Especial", afirma Juarez.
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